Há algum outro bom momento para discutir a dívida pública e externa?

As instituições (BCE, MEE, etc.) e as pessoas que as dirigem deverão ser capazes de responder às críticas ou começar a trabalhar para as alterar.

O “Relatório da Dívida” apresenta soluções concretas e aviva um debate que é urgente, que vai continuar e que tem sido parcialmente omisso em Portugal. Na realidade, têm estado pouco presente no debate público, tecnicamente fundamentado, temas como a reestruturação (ou renegociação) da dívida, a unidade de Tesouraria do Estado, a composição da “almofada financeira”, a estrutura da carteira óptima de títulos da dívida pública e a política de provisões do Banco de Portugal. Questionar políticas nacionais (segunda parte do relatório) obriga as instituições responsáveis nacionais a optarem entre justificar bem as políticas atuais, mantendo-as, ou a alterá-las. Questionar regras europeias (terceira parte do relatório) tem um nível de complexidade superior, pois envolve mais atores europeus, mas tem exatamente o mesmo efeito. As instituições (BCE, MEE, etc.) e as pessoas que as dirigem deverão ser capazes de responder às críticas ou começar a trabalhar para as alterar.

De forma telegráfica, aqui vão elencadas várias respostas aos críticos do relatório.

1. É uma má altura para discutir a dívida 

Politicamente poderá ser um momento difícil na UE, mas certamente que tecnicamente a discussão está no momento certo pois a discussão técnica deve anteceder a política. Ou será que se defende que o melhor é nem sequer falar sobre o tema?

Em relação ao problema da dívida, as atitudes dividem-se em: considerar que o problema se resolve apenas com crescimento, privatizações e saldos primários excessivos (perspetiva do anterior governo) ou com crescimento, saldos primários mais sensatos e medidas de política para redução do peso da dívida (a nossa abordagem). Para que nos entendamos: é bom que os críticos clarifiquem como se posicionam face a este dilema. E, por outro lado, é bom que o país introduza esta discussão pública quando os dados económicos são favoráveis: a economia cresce, o desemprego diminui e as contas públicas evoluem positivamente e até com elevados excedentes primários.

2. Afinal não há reestruturação da dívida

Fazemos uma proposta de reestruturação da dívida no quadro europeu que beneficia devedores e credores no longo prazo. Como se sabe, o que defendemos (na terceira parte) é uma reestruturação, com haircut real voluntário, porque existe uma diminuição do valor presente, mas sem redução do valor nominal, e resultante de uma renegociação com um pequeno grupo de credores - as instituições oficiais europeias, que detêm uma parte da dívida direta do Estado. Tendo em conta que o valor atualizado da dívida diminui substancialmente, uns poderão designar o processo como reestruturação, outros como renegociação. Mas, convenhamos, faz pouco sentido discutir a semântica se nos tivermos entendido em relação à substância: alterar de vez a dinâmica da dívida pública (e da dívida externa) portuguesa, tornando-as económica, social e politicamente mais sustentáveis.

3. As propostas de renegociação dos empréstimos oficiais (alongamento de maturidades e descida dos juros) i) vão contra as regras atuais e ii) dariam prejuízo ao FEEF/MEE, logo, são inviáveis

Todas as regras têm sido alteradas e estas devem ser corrigidas. Mostrámos no relatório que as regras da política de expansão quantitativa do Banco Central Europeu já sofreram alterações e penalizam sobretudo Portugal (e é bom que se saiba isso). Também as regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento têm vindo a sofrer alterações desde a sua conceção inicial. Sendo reconhecidamente difícil obter um acordo nesta matéria, é necessário procurar alterar as condições dos empréstimos dos credores oficiais através de uma estratégia multilateral europeia. Portugal deve ser parte dessa estratégia e nela deve saber exatamente o que pretende alcançar. Os fundos europeus (FEEF/MEE) financiam-se com emissão de obrigações no mercado e fazem um roll-over desse financiamento. No primeiro trimestre de 2017, o FEEF emitiu a 5, a 25 e a 39 anos com cupão de 0%, 1,7% e 2%, respetivamente. Por seu turno, o MEE emitiu a 10 anos a 0,75%. Fica provado que a nossa proposta é inteiramente viável e o desenho detalhado da mesma deve ser objeto de negociação para atingir os objetivos propostos.

4. A política de compra de ativos pelo BCE não se manterá

O cenário ideal seria que essas instituições mantivessem a dívida pública adquirida no âmbito do PSPP por tempo indefinido. Presentemente, esse é o cenário de facto, uma vez que os títulos são detidos até à maturidade, sendo o valor reembolsado reinvestido em novos títulos, e não há qualquer indicação, seja no BCE seja noutro banco central de referência, ao modo como o balanço poderá ser reduzido no futuro. Há obviamente cenários intermédios que podem e devem ser discutidos para os próximos dez anos. Eles poderão passar por uma sinalização forte no sentido da continuação do programa para além de 2017 e de recompra dos títulos da dívida que chegam à maturidade. Mas sejamos claros. No final de 2017, o balanço total do Eurosistema ultrapassará os 4 biliões de euros, sendo que 2,3 biliões de euros serão títulos de dívida privada e pública adquiridos no âmbito do programa de expansão quantitativa do BCE. O programa de expansão quantitativa do BCE, através do crescimento do balanço do Eurosistema, deu um contributo fundamental para a retoma económica da zona euro. Parece provável que o Conselho do BCE não queira fazer perigar essa retoma, nem queira criar instabilidade no sistema financeiro europeu, logo que decida pela manutenção no balanço do Eurosistema da quase totalidade dos 2,3  biliões de euros de ativos adquiridos no programa de expansão de quantitativa, e durante muito tempo. Isto é, um cenário provável que é (muito) próximo do defendido no Relatório do Grupo de Trabalho.

5. Reduzir as maturidades da dívida titulada é um risco e levará ao aumento das yields, o que acabará por levar a uma subida da despesa com juros

Se essa tese fosse correta, haveria sempre ganhos em aumentar maturidades e, por conseguinte, o ideal mesmo seria uma maturidade da dívida muito superior à atualmente registada. Obviamente que qualquer gestão de dívida envolve riscos e deverá ser feita de forma cuidada tendo em conta diversas variáveis. A estimativa de poupanças foi calculada com base numa hipótese ceteris paribus (tudo o resto constante), aproximativa, mas que foi necessária para os cálculos. Aquilo que está implícito nas críticas à redução da maturidade é que a atual política (que tem aumentado a maturidade e o custo dessa dívida) e a atual composição da carteira são ótimas, isto é, que qualquer desvio (de aumento ou redução das maturidades) levaria a custos esperados superiores. Nem o IGCP nem os nossos críticos apresentaram argumentos que nos convençam de que a estratégia atual é ótima. E nota-se que a questão deveria ter sido identificada antes de se aumentarem as maturidades entre 2013 e 2016, com os concomitantes aumentos da despesa com juros. Por isso, o importante é que o Relatório do Grupo de Trabalho alerta para esta variável, que tem um impacto significativo nas contas públicas. O Governo deverá ponderar o possível trade-off entre redução da maturidade média da dívida titulada e eventuais subidas das yields.

6. Reduzir a “almofada financeira” é um risco

Esta crítica resulta de leitura que se afigura incorreta do relatório. Primeiro, distinguimos a composição da almofada financeira (origem dos fundos) da sua dimensão. O primeiro argumento é que se deve reforçar a unidade de tesouraria do Estado e incentivar organismos, nomeadamente da administração local, a colocarem as suas disponibilidade junto do Tesouro e serem remunerados por isso. A efetivarem-se, o impacto na colocação da dívida bem como da dimensão absoluta da almofada financeira seria positivo, obtendo-se uma redução da dívida e um aumento da almofada financeira ao dispor do IGCP. Em, segundo lugar, é referido explicitamente que são as várias medidas propostas que, a efetivarem-se, permitirão uma redução da almofada financeira. Finalmente, notamos que, tal como a propósito da maturidade média residual da dívida direta do Estado, parece prevalecer entre alguns críticos, eventualmente por reflexo conservador, a convicção de que o atual status quo é de alguma forma ideal ou ótimo.

7. Alterar a política de provisões do Banco de Portugal fragiliza o seu balanço e afeta a sua independência

As contas do Banco de Portugal devem refletir de forma verdadeira e fidedigna a sua situação financeira. A constituição de provisões para riscos gerais é uma forma de guardar proveitos para dias maus. É também uma forma de, em sentido lato, aumentar os fundos próprios do Banco de Portugal, sem qualquer deliberação do acionista. A figura das provisões para riscos gerais é anacrónica, tendo desaparecido dos planos de contas aplicável ao sector privado há já algum tempo. Acresce que, ao contrário do defendido por alguns críticos, não só não existe qualquer orientação do BCE em matéria de provisões, como as normas contabilísticas internacionais (IFRS) determinam que as provisões só poderão ser criadas se houver uma probabilidade efetiva de perda, bem como uma estimativa rigorosa dessa perda. Por outro lado, as provisões só devem ser reconhecidas (IFRS) se decorrerem de acontecimentos passados e devem ser independentes de ações futuras da própria entidade. Se o objetivo é acautelar perdas que possam eventualmente decorrer de uma alteração futura da política monetária do BCE, e não de riscos associados à detenção em balanço de determinados ativos, então o instrumento adequado para essa gestão de risco é o capital e as reservas, não as provisões. A constituição de provisões, nesses casos, violaria as normas IFRS. O nosso objetivo é o de garantir que as provisões seguem regras objetivas e transparentes e que os efeitos orçamentais positivos do PSPP não são injustificadamente anulados pela política de provisionamento do BdP. A independência financeira do BdP não está nem estará em causa, porque, como demonstramos, o PSPP dá e dará lucros significativos ao BdP, não existindo cenários prováveis de perdas que fundamentem a criação de novas provisões. Por outro lado, a não constituição de provisões, para além de aumentar os dividendos, também aumenta as reservas do BdP, que são um elemento adequado para reforçar os fundos próprios do banco. Em consequência, provisões fundamentadas significam adequados pagamentos em dividendos e impostos, que constituem unicamente a forma de devolução a Portugal de parte dos lucros que o BCE obteve com a dívida portuguesa.

Por todas estas razões, saudando o debate acerca do relatório, mantemos a nossa convicção de que as soluções que apresentamos são consistentes e aplicáveis e que representariam um significativo impulso à recuperação económica e à coesão social de um país já demasiadamente sacrificado na era da troika.

Ricardo Cabral, João Galamba, Pedro Gil, Francisco Louçã, Ricardo Pais Mamede, Paulo Trigo Pereira, Pedro Filipe Soares, Miguel St. Aubyn

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