Governo promete diálogo com todos, ao mesmo tempo que atira “vinagre” à direita

Debate sobre programa terminou com o Governo a prometer compromissos. Só que pelo meio não evitou atirar farpas à direita, que exigiu novas eleições, caso o acordo à esquerda falhe. Esquerda essa que já está a exigir mais ao PS.

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Enric Vives-Rubio
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“Virar a página”, “ultrapassar o agastamento”, “superar o ressentimento”. Foram muitas as analogias que ontem foram sendo utilizadas pelo novo Governo socialista para assinalar o “novo tempo” prometido por António Costa. No entanto, a tentativa de aparecer ao país com uma imagem magnânima de quem estava disponível para dialogar com todos em prol do país foi sendo atropelada pelo constante acerto de contas a que os novos membros do Governo não foram capazes de resistir.

O desfecho do debate sobre o programa de governo estava já definido. Confirmou-se na votação da moção de rejeição apresentada pelo PSD e CDS, chumbada pelos 122 votos do PS, BE, PCP e Verdes – o PAN absteve-se. A esquerda, no entanto, não se limitou a apoiar o PS, avisando que os acordos tinham de concretizar-se negociando. E, à direita do hemiciclo, PSD e CDS não se cansaram de questionar a legitimidade política do Governo, dramatizaram as consequências das medidas pré-anunciadas e exigiram eleições na eventualidade do entendimento da esquerda fracassar.

À partida, a certeza do chumbo da rejeição devia ser justificação suficiente para uma postura mais dialogante da parte do Governo. E que até se ouviu a espaços nos sucessivas intervenções do PS, na bancada e no Governo.

Foi da boca do novo ministro dos Negócios Estrangeiros que saiu a comparação do "novo tempo" com o de sarar feridas. “A discussão que havia a fazer está feita, às feridas que ficaram precisamos de lhes pôr não vinagre, mas remédio”, disse a meio do discurso que encerrava o debate. O país queria “superar o ressentimento e a crispação”, porque “o tempo não estava para radicalizações, mas sim para compromissos”. “A delicadeza da situação do país torna indispensável uma política assente no diálogo, na concertação e no sentido de compromisso”, insistia Augusto Santos Silva.

Também o líder parlamentar, Carlos César, falou do “tempo de ultrapassar o agastamento e a invocação das atribulaçãoes passadas”. Só que, como sempre acontece de cada vez que um novo governo assume funções, a maioria das intervenções vindas do executivo e da bancada socialista fez questão de não esquecer “o ponto de partida”.

Para justificar a classificação do anterior Governo como o “regime de fantasia e ilusionismo”, Augusto Santos Silva regressou exaustivamente ao passado recente. A resolução do Novo Banco “teria efectivamente custos para os contribuintes”, a devolução da sobretaxa do IRS “era quimera e engodo”, a economia e emprego continuavam “bem longe de qualquer trajectória de crescimento sustentado”, a dívida pública continuava a “aumentar”, um quinto da população permanecia “em risco de pobreza”, os cortes, “supostamente excepcionais” mantinham-se “prolongados além do programa da troika”, o investimento tinha caído “brutalmente”. E para rematar não resistiu a pôr vinagre na “ferida” do défice: "Uma coisa é certa. A antiga maioria PSD-CDS, que falhou o seu próprio objectivo orçamental em 2011, em 2012, em 2013 e em 2014, também falhou a meta de 2,7% que fixou em 2015."

A articulação do ministro com Carlos César foi evidente. Foi o líder parlamentar que falou no “novo ponto de partida” para avisar que este estava “dificultado pelos resultados improdutivos de uma política que prosseguiu sem freio e sem a consideração das suas próprias consequências negativas”. Algo que era também resultado pelo outro defeito apontado por César à coligação, a da “prática de sobranceria e auto-suficiência do poder político da direita”.

O tom acusatório já vinha das intervenções da manhã. E nem mesmo nas intervenções mais sectoriais se evitou, como foi notório no discurso do ministro da Ciência e Tecnologia. “Sabemos o desafio. O desafio é grande, o desafio é enorme. Pela primeira vez na democracia portuguesa Portugal afastou-se da Europa em termos de investimento na Educação. Sabemos todos que as políticas da direita foram contra a ciência. Temos de inverter esse caminho”, acusou Manuel Heitor.

E até quando o ministro do Trabalho e Segurança Social avançou com a sua medida prioritária para os “primeiros meses de trabalho”, não conseguiu evitar a farpa na coligação. O reforço dos meios de fiscalização da Autoridade para as Condições do Trabalho, incluindo o aumento de fiscalizadores no terreno, eram necessárias devido ao “agravamento das condições de trabalho” provocadas pela aplicação de políticas da direita.

Acordos são para concretizar
À esquerda do PS, é agora tempo de olhar para o futuro e de pedir que os acordos assinados há três semanas se concretizem em medidas, a somar às iniciativas de reposição de rendimentos já no Parlamento. É isso que os portugueses esperam, disseram Bloco, PCP e PEV nos avisos que foram repetindo ao longo do dia, em que também reiteraram que não abdicarão dos seus programas. “Sem ambiguidades, mas também sem transigências”, ouviu-se, a esquerda recusa “esconder problemas” ou divergências. Por isso mesmo, os três partidos reafirmaram que este não era o seu programa, mas olharam com bondade o esforço de convergência que ele representa, ao integrar medidas que acordaram com o PS.

À baila veio a questão da reestruturação da dívida, um espinho no dedo do PS que Catarina Martins enterrou mais um pouco, logo a abrir os trabalhos da manhã. O crescimento económico “exige um processo de reestruturação da dívida pública que pare a sangria de recursos para fora do país”, disse a porta-voz bloquista, que marcou terreno no sector financeiro, ao advertir que o Governo “não pode esconder-se no Banco de Portugal” para arranjar soluções para os bancos em dificuldades e que o BE irá exigir uma “clara prestação de contas sobre o sistema”.

No encerramento, Pedro Filipe Soares insistiu no cerco ao PS: o acordo que os dois partidos assinaram “deve ser materializado rapidamente”, é preciso “aprofundar a dimensão programática” e “há ainda muito por onde o fazer” – vão “trocar pontos de vista e chegar a compromissos para resolver” o problema da sustentabilidade da dívida externa, exemplificou. “O arco da Constituição tem rapidamente de se sentir na vida concreta das pessoas”, o Parlamento deixará de ser a “caixa de ressonância” do Governo, e o compromisso é o principal alicerce desta nova fase da vida política, insistiu.

Jerónimo de Sousa poderá ter feito a primeira cedência ao PS ao admitir ter a “consciência de que o povo não exige, nem quer tudo de uma vez”, mas avisou que o povo “também não quer que se mude alguma coisa para ficar tudo na mesma”. O líder do PCP voltou a nomear os “constrangimentos internos e externos” – como os instrumentos financeiros europeus – que são um “manifesto colete-de-forças” e que impedem o desenvolvimento “soberano”.

Jerónimo fez uma crítica acesa da política do Governo PSD-CDS e da atitude dos dois partidos nos dois dias deste debate, durante o qual optaram por uma “política da terra queimada”, expressando “uma azedo mau perder”, ao apostarem numa imagem de “iminente catástrofe no país” com um executivo PS. Um governo que, disse, tem agora condições para assegurar uma “solução duradoura na perspectiva da legislatura” e que tem um programa que a ecologista Heloísa Apolónia classificou de “porta de esperança” para a mudança do país.

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