Fora da Caixa

É inconcebível que António Domingues não apresente ao Tribunal Constitucional a declaração de rendimentos que a lei exige aos titulares de cargos públicos de relevo.

O Orçamento de Estado (OE) de 2017 leva em conta os prejuízos colossais de alguns bancos, tanto privados como públicos. No próximo ano o governo vai gastar 561 milhões de euros com o BPN, que já custou mais de 3200 milhões de euros aos portugueses. O pequeno banco privado  foi nacionalizado em 2008, passando a parte má para a CGD, o que poderá vir a custar a todos nós a espantosa soma de 6300 milhões de euros. Os responsáveis pela gestão danosa estão a ser julgados desde 2010, devendo a sentença ser lida em Abril próximo. O Ministério Público pediu uma pena de prisão entre os 13 e os 16 anos para o fundador do banco, José Oliveira e Costa, que foi secretário de Estado dos Assuntos Fiscais de um governo do PSD.

Segundo o mesmo OE, alguns restos do BES, o grande banco “resolvido” em 2014 com a criação do Novo Banco, à venda há demasiado tempo, e do Banif, que foi intervencionado em 2015 com a venda da parte boa ao Santander por um preço irrisório, vão passar para a esfera pública, com um custo no próximo ano de 85 milhões de euros. Lembre-se que o BES foi resgatado por uns estonteantes 4900 milhões de euros, desconhecendo-se os prejuízos totais que a operação  causará ao erário público. O Banco de Portugal moveu processos de contraordenação aos ex-responsáveis do BES, com Ricardo Salgado à cabeça, cujo desfecho se aguarda. Por seu lado, o resgate do Banif custou a todos nós 2250 milhões, menos do que o BES e o BPN mas ainda assim chocante para um banco menor.

Finalmente, o OE em discussão permite uma injecção de capital de 2700 milhões de euros na CGD, que se destina a cobrir prejuízos acumulados ao longo dos últimos anos. Embore paire o nevoeiro sobre a origem desses prejuízos, há indícios de ligações de alguns casos envolvendo políticos. Um deles é a perda de 100 milhões de euros relativa a um empreendimento em Vale do Lobo, que ocorreu quando Armando Vara, que tinha sido ministro num governo PS, era administrador da CGD, e que está a ser investigado no âmbito da Operação Marquês que o Ministério Público moveu ao ex-primeiro-ministro José Sócrates.

Estes descalabros têm em comum a má gestão, com custos astronómicos para os contribuintes, e a emergência de ligações perigosas, nalguns casos perversas, entre a banca e a política. Gato escaldado de água fria tem medo. Os contribuintes têm o direito de exigir uma gestão decente dos bancos – sejam estes privados ou públicos, uma vez que os desastres privados têm sido amparados por dinheiros públicos - e uma relação de independência entre banqueiros e políticos. E têm também o direito de exigir a necessária transparência por parte dos gestores da coisa pública.

É neste quadro que deve ser analisada a nomeação pelo governo PS de António Domingues para presidente da CGD. Acredito que seja um gestor competente e não me faz impressão o salário que ele pediu, que por muito alto que seja não passa de uns “trocos” comparados com os prejuízos brutais que temos suportado. A banca lida com muito dinheiro, pelo que acho natural que os banqueiros sejam mais bem pagos de que outros administradores. Vejo, porém, em Domingues um administrador que, não percebendo o que é a causa pública, quer tratar a CGD como se fosse um banco privado, um banco que ele pretende gerir não dando troco aos accionistas que somos nós todos. Nunca entendi porque devemos ter um banco público com a dimensão da CGD, que é algo singular no panorama europeu. Ao contrário dos tribunais e das forças armadas, a banca é uma actividade que ganha em ser livre e concorrencial. Mas, tendo nós um grande banco público, é preciso reconhecer que um banco desse tipo, embora em concorrência com os privados, tem obrigações e regras diferentes. É imoral que o seu líder acumule uma pensão com o salário, quando essa situação é vedada aos restantes servidores do Estado. Além disso, é inconcebível que ele não apresente ao Tribunal Constitucional a declaração de rendimentos que a lei exige aos titulares de cargos públicos de relevo. Espero bem que o referido Tribunal não permita esta excepção. O governo pode ter querido um gestor “fora da caixa”. Mas pode acabar com um gestor fora da Caixa.

*Professor universitário (tcarlos@uc.pt)

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