Eu fui ver a selecção – e não paguei

Paulo Futre cunhou a expressão “charters de chineses”. Joaquim Oliveira inventou a excursão “charters de políticos”.

Eu, pecador, me confesso. Foi em 2006. Na altura era jornalista do Diário de Notícias, e um ano antes Joaquim Oliveira tinha feito um dos piores negócios da sua vida ao comprar a Lusomundo Media. Oliveira = Olivedesportos = futebol = bilhetes à borla. Alguém da direcção do DN – já não recordo o benemérito – teve a simpatia de me convidar para ir a Colónia assistir ao primeiro jogo da selecção no Mundial da Alemanha, um Portugal-Angola (1-0, golo de Pauleta) com bonita ponte aérea organizada pela Agência Cosmos. Lá fui. Foi uma experiência semi-agradável – Portugal ganhou, eu perdi a carteira, sacada por um excelente gatuno –, mas deu para aprender a ser prudente em matérias de futebol, jornalismo, política e carteiras. Caros leitores: eu vi os aviões. Se começarmos a pedir a demissão a toda a gente que já aceitou bilhetes e viagens para ir ver futebol à borla, temo bem que corramos o risco de ficar sem metade do governo, sem metade da bancada parlamentar do PS, do PSD e do CDS, e sem metade das editorias e direcções de todos os jornais, rádios e televisões em Portugal. Já para não falar nos colunistas – começando por mim.

Claro que o meu caso não é igual ao do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais. Eu aceitei uma oferta do meu patrão, ele aceitou uma oferta de um contribuinte com o qual o Estado está em litígio. Mas, olhando para trás, provavelmente também eu não deveria ter aceitado a oferta do patrão, e hoje em dia duvido que o fizesse. (Antes que a contabilidade da Olivedesportos comece com ideias: não estou a pensar devolver o dinheiro.) A viagem, o bilhete e os almoços (a que não tive direito, por me faltar estatuto VIP) são o menos – a chatice reside nas proximidades e cumplicidades que se criam. No dia em que a BàB (Bola à Borla) passar a absoluto anátema nacional, os ficheiros da Agência Cosmos serão um festim para a WikiLeaks. Juntem Benfica, Porto, Sporting e selecção, imaginem o número de jogos nacionais e internacionais, e é impossível que não nos caiam na sopa resmas e resmas de políticos e jornalistas e comentadores que andaram a viajar e a usufruir do BàB por essa Europa fora nos últimos 30 anos. Paulo Futre cunhou a expressão “charters de chineses”. Joaquim Oliveira inventou a excursão “charters de políticos”.

Parece-me, aliás, patético o charivari que o PSD está a fazer com isto, com Fernando Negrão a clamar pelo fim das férias de António Costa, como se a pátria tivesse sido invadida pelo Estado Islâmico. O secretário de Estado dos Assuntos Fiscais esteve muito mal, como já aqui escrevi, mas o governo reagiu decentemente ao escândalo, como, aliás, já havia feito no caso João Soares. A subida de tom do PSD é tanto mais absurda quanto o próprio líder da bancada também foi ver a bola argumentando estar em “trabalho político”, e o seu vice-presidente, Hugo Soares, teve a lata de invocar “motivo de força maior” para viajar até França, declarando ser “deputado 24 horas por dia”.

Definição jurídica de “força maior” (portaria 1318/95): “todo o evento imprevisível e insuperável”, como “catástrofe natural, actos de guerra, alteração da ordem pública, bloqueio económico e incêndio” – a perfeita definição de um jogo de futebol. Pergunto-me se, além de deputado, Hugo Soares também será obtuso 24 horas por dia, ou se o foi só enquanto proferiu tais declarações. Um último comentário a quem apregoa tanta moralidade: os deputados do PSD pagaram as viagens? Perfeito. Mostrem as facturas.

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