Eu assim não quero

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O Grupo da Direita da Esquerda Socialista (GDES) é a mais recente seita herética do PS, de raiz segurista, liderada por um senhor com nome de santo (Francisco Assis) que não conseguiu abrir a boca no XX Congresso, o da “esquerdização”. Deixaram-no para ali com o discurso pendurado e deu-lhe a fome e apanhou o avião para o Porto porque não estava para aturar aquilo.

Existe pouco consenso, entre os especialistas em “história alternativa”, sobre qual podia ter sido o futuro do PS, de Portugal, da União Europeia e do mundo, se Carlos César, na mesa do congresso, tivesse deixado Assis subir ao palco antes do jantar para defender a proscrita tese da aliança governativa com o PSD, no futuro.

Para uns poucos, nesse final de uma semana de todos os riscos falados, de todos os soarismos gritados e de todos os socratismos calados, falhou a hipótese de se ouvir a voz da razão política e económica. Para a maioria, no entanto, evitou-se que Francisco Assis saísse da FIL com um caixote de lixo enfiado na cabeça, como já lhe aconteceu há anos com os camaradas (da Fátima e da cidade) de Felgueiras, mas ele continuou na dele, como se não fosse nada, a pingar molho e cascas de laranja.

Fonte dos bombeiros sapadores de Lisboa, por outro lado, agradece a Carlos César a “iniciativa de protecção civil” de ter despachado Assis para as calendas gregas da madrugada. Evitou o incêndio de um salão “cheio de tipos que não aturam a ideia de um novo Bloco Central e estão com a azia da prisão do outro que agora escreve cartas a tinta vermelha”. Assis, crítico da orientação escolhida pelo líder António Costa, acabou por ajudar Costa no principal objectivo do congresso: os congressistas nunca falarem do outro (principalmente depois das refeições). Mas, já que tem de surgir um qualquer problema, bulha ou equívoco, para que um congresso não seja consensual, que se fale ao menos que Assis nem sequer falou.

Fogo, que análise mais rebuscada. Mas já passou uma semana e numa semana a política dá muita volta. Para cada tese, a sua antítese. Por exemplo, o outro escreveu de Évora para o Diário de Notícias:

“Digamo-lo sem rodeios: o ‘sistema’ vive da cobardia dos políticos, da cumplicidade de alguns jornalistas; do cinismo das faculdades e dos professores de Direito e do desprezo que as pessoas decentes têm por tudo isto. De resto, basta-lhes dizer: deixem a justiça funcionar.”

A antítese apareceu à mesma hora, com João Cravinho, na RTP. O ex-ministro socialista disse por que é que o outro lhe chumbou propostas no passado: “É muito simples: porque não havia vontade política de combater a corrupção.” Cravinho não põe “as mãos no fogo” porque já o fez noutras vezes: “E queimei-me.” Sobre a culpabilidade: “Claro está, eu nunca pensei que pudesse, mas também perante um Ministério Público não estou a dizer ‘cambada de tontos’, se me permite a expressão. Não tenho o direito de fazer isto.” Isto não é pôr as mãos no fogo por outro. É pôr o outro em cima das brasas, se nos permite a expressão. É esta a síntese.

Francisco Assis, ao regressar ao cargo de eurodeputado em Bruxelas, pegou no archote da independência e ateou um molhe de explicações. Explicou no PÚBLICO que existe uma “esquerda proclamatória” com uma “retórica onde a grande eloquência dos lugares-comuns não consegue esconder um imenso vazio de ideias”, uma linha de “não-pensamento” que encontrou “uma curiosa vocação inquisitorial”. Queixando-se de que o PS, no fundo, está em risco de se render “à retórica de uma certa extrema-esquerda de inspiração bolivariana que alegremente por aí campeia”, Assis atira-se à História: “Há sempre um Savonarola sob a epiderme de um falso progressista.” Não explica quem foi o senhor, mas para isso é que serve a Internet: um serviço público sobre a vida de frades que se metem na política e acabam mal.

Girolano Savonarola nasceu em 1452 em Ferrara e morreu em Florença, em 1498, aos 46 anos. Ganhou fama ao escrever contra a “vida pagã” do Renascimento, fazer profecias sobre o apocalipse, por se dizer “a voz de Deus”, por fazer procissões religiosas, por transformar o Carnaval numa chatice piedosa e por ter organizado “fogueiras das vaidades” em que as pessoas queimavam objectos de valor. Teve grande poder na cidade, afrontou os Médici e o Papa Alexandre VI, que o excomungou. Depois meteu-se numa encrenca final de fanático. Foi desafiado, por um frade opositor, para uma “prova de fogo”: caminharem sobre brasas, porque um deles nada sofreria, por intervenção divina. No dia combinado, deu a Savonarola um desejo de nem ata nem desata, de nem o pai morre nem a gente almoça, depois choveu brasas e o povo indignou-se mais do que Mário Soares e deixou de acreditar nele, tal foi o fiasco. Acabou enforcado e queimado na praça central de Florença.

Foi esta comparação que ganhou António Costa, ao dar a entender que nem com um ferro em brasa encostado ao peito se aliará com partidos da direita. Porque há uma clivagem ideológica e civilizacional. Não deixará de procurar o diálogo à esquerda. O que é que querem, são feitios.

Para o desolado Assis, além de Ferro Rodrigues, que é o Savonarola da casa, o PS admite conversar com Savonarola Rui Tavares, Savonarola Daniel Oliveira, Savonarola Ana Drago e, se calhar, com os Seis Savonarolas do Bloco de Esquerda. Alguém vai correr em cima de chamas. Alguém, ou Assis ou Costa — ou a direita da esquerda ou a esquerda da direita da esquerda — vai acabar com os pés assados em churrasco.

Mas é como jantar no congresso do PS: com Savonarola, toda a política melhora.

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