Esquerda contracorrente

Seria dramático que a social-democracia no séc. XXI perdesse contacto com tudo o que significa inovação e transformação nos mais diversos planos da vida económica, social e política.

1. Esta semana fica a meu ver marcada pela publicação neste jornal de dois excelentes artigos da autoria de articulistas que se integram no espaço político e doutrinário da esquerda democrática. Rui Tavares e Rui Pena Pires, abordando assuntos diferentes, demonstraram como é possível elaborar uma análise e um pensamento nos antípodas do estereotipado discurso dominante, o qual se limita a reproduzir a monocórdica litania antiliberal. Pelo contrário, nos textos em apreço descortina-se uma compreensão da presente realidade histórica com outro grau de elaboração intelectual.

Em “De que se queixam os holandeses” (PÚBLICO, 15-03-2017), Rui Tavares, a propósito das eleições ontem realizadas na Holanda, lembra que o crescimento de um certo populismo nacionalista e xenófobo ocorre em sociedades bastante prósperas, dotadas de um Estado-Providência muito forte e com níveis de desemprego especialmente baixos. Daí conclui, quanto a mim acertadamente, que o recurso às explicações de base exclusivamente económica e social não permite a correcta apreensão da origem desse fenómeno e, como tal, acaba por impedir o adequado combate ao mesmo. Ao situar o centro da discussão no plano de uma disputa de valores, reconduzida a uma oposição entre nacionalistas e cosmopolitas, Tavares contribui para um melhor discernimento do que se passa hoje não só na Holanda mas em vários outros países europeus. Na verdade, como já aconteceu no caso do "Brexit", estão a surgir novas linhas de fractura política que, não subvertendo totalmente as tradicionais, obrigam a uma redefinição significativa da natureza do próprio campo da discussão política. Nesse sentido, será útil indagar o que aproxima e afasta o cosmopolitismo de esquerda do cosmopolitismo de direita, e, de igual modo, o que relaciona as posições nacionalistas de um e outro lado desta dicotomia política clássica. Isso leva-nos directamente para a discussão do problema europeu e confronta-nos com a necessidade de estabelecer um novo modelo de interpretação dos consensos e dos dissensos que em torno dele se geram.

Para bem das nossas democracias, seria bom que a esquerda democrática assentasse em duas ideias básicas: a de que pode e deve convergir com a direita democrática e liberal no domínio da formatação jurídico-institucional do espaço político europeu, e a de que deve garantir claramente a sua autonomia no âmbito das políticas concretas, nomeadamente daquelas que mais têm que ver com a promoção da justiça social. A partir daí poderá ser possível uma discussão útil com a direita europeia sobre a natureza das reformas institucionais a levar a cabo, de modo a que se criem condições mais propícias à afirmação das divergências no plano da política quotidiana, as quais são imprescindíveis para o próprio bem-estar da democracia. Trata-se de um caminho difícil, exigindo apurado sentido de responsabilidade de todas as partes envolvidas, mas que aparenta ser o único capaz de permitir a superação dos bloqueios actualmente existentes no espaço político europeu.

Já Rui Pena Pires, num artigo de invulgar ousadia nos tempos que correm, intitulado “Outubro de 1917” (PÚBLICO, 12-03-2017), formula, sob a forma de um repto ao Bloco de Esquerda, uma série de considerações sobre a renovação da social-democracia deveras interessantes. O que mais singulariza o seu texto é a sua explícita recusa da anatematização do capitalismo e da economia de mercado, com o que isso significa de valorização da livre iniciativa individual como factor concorrente para o desenvolvimento das sociedades. Esta perspectiva tem sido excessivamente desvalorizada por uma nova esquerda que, no seu afã de se distanciar de qualquer suspeita de colaboração com o pensamento económico liberal, acaba por deitar fora o menino com a água do banho. Uma das principais questões que se coloca hoje à esquerda europeia é precisamente a de não ceder à tentação de se transformar numa ampla provedoria de múltiplos interesses corporativos, na maior parte dos casos com grande ligação ao Estado. Seria dramático que a social-democracia no séc. XXI perdesse contacto com tudo o que significa inovação e transformação nos mais diversos planos da vida económica, social e política. Esse risco infelizmente existe. É por isso mesmo que são importantes reflexões doutrinárias que apontem no sentido contrário.

2. O que se está a passar na Venezuela, com o silêncio cúmplice de alguns e a adesão entusiástica de outros, reveste-se de excepcional gravidade. O regime Bolivariano confiscou as liberdades públicas, controlou o poder judicial, anulou a autonomia parlamentar e provocou um desastre económico e social que já atingiu as dimensões de uma verdadeira crise humanitária. A subnutrição galopante e a falta de acesso a medicamentos conduzem a mortes evitáveis. A situação nas prisões, onde se encontram detidos centenas de presos políticos, atingiu tal estado de degradação que já há alertas para a prática de canibalismo entre a população prisional. Até agora, todas as tentativas levadas a cabo por diversas instâncias e personalidades internacionais, desde o Papa Francisco a José Rodríguez Zapatero, têm esbarrado com a intransigência autoritária do regime de Maduro. É assim que acabam as revoluções populistas.

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