Em política, a sorte constrói-se

Para ter sorte é preciso saber construir a sorte. Este princípio serve que nem uma luva ao Bloco de Esquerda e à capacidade que este partido tem tido de construir o seu caminho, fazer as suas transições e transformações estratégicas, lidar com as próprias contradições e com as divergências e conflitos internos e até com as contrariedades que lhe vão surgindo no caminho. Uma eficácia de gestão política que para muitos dos opositores chega a ser irritante e que este fim-de-semana mais uma vez funcionou com a perfeição mecânica de um relógio suíço.

Não terá sido por acaso que a data da Convenção caiu precisamente a seguir ao referendo sobre a saída do Reino Unido da União Europeia e no dia das eleições em Espanha. É certo que o BE não sabia o resultado do referendo nem que o Podemos ia estar em segundo nas previsões de voto. Mas soube colocar-se no olho do furacão e construiu o momento perfeito para surgir perante o país a assumir a mudança que diz protagonizar. Uma agenda política de tal forma radical e imensa que Marisa Matias sistematizou numa frase: “O nosso objectivo é muito modesto, só estamos aqui para mudar o mundo.”

Durante dois dias, com uma coordenação milimétrica das intervenções dos dirigentes, a estratégia foi sendo revelada e assenta em dois eixos centrais um nacional e outro internacional. Em Portugal, o BE quer ser poder e aumentar a sua implantação eleitoral. A prioridade dada às autárquicas mostra neste domínio uma nova maturidade partidária. O objectivo final é ser mesmo “a força mais forte do Governo de Portugal”, como disse na sua intervenção Pedro Filipe Soares.

Para o conseguir, o BE está apostado em pressionar o PS e assumir-se em Portugal como grande paladino das causas que até agora foram as bandeiras da social-democracia. É, aliás, extraordinária a sobranceria que sobressai da atitude do BE quando fala sobre o apoio parlamentar que presta ao Governo do PS. Quem não conheça bem a situação política portuguesa até pode ser levado a pensar que o BE integra o Governo e que o PCP não conta como parceiro de apoio parlamentar do executivo liderado por António Costa.

Assumindo implicitamente que pretende crescer eleitoralmente comendo eleitorado ao PS, o BE não baixou a pressão sobre os socialistas. E em vésperas do momento decisivo das negociações sobre o Orçamento do Estado para 2017, Catarina Martins sufragou na Convenção o caderno de encargos para Costa: aumento das pensões, investimento para criar emprego e combate à precariedade.

Mas coube a José Manuel Pureza – que simbolicamente iniciou a sua intervenção com a primeira frase do Manifesto de Karl Marx e de Friedrich Engels: “Há um espectro que paira sobre a Europa” –  radicalizar o discurso ao interpelar o PS e dirigir-se nominalmente a António Costa para lembrar o momento que se vive na Europa e garantir: “Em nome da melhor Europa, do espírito critico, das lutas todas pela dignidade, da permanente incompletude, é com serenidade e com firmeza que afirmamos nesta X Convenção do BE que não se pode ser socialista senão recusando aquilo em que União Europeia se tornou.”

E é esta a ponte que liga os dois eixos vitais de estratégia que saem da X Convenção e que na sua essência, esclareçamos, permanece igual. A saber: o BE quer crescer eleitoralmente e ser poder em Portugal para, com outros partidos de esquerda – como partido internacionalista que é , mudar estruturalmente a organização política da Europa, por dentro e em conjunto com outros povos europeu, abrindo um caminho que poderá levar ao fim da União Europeia que hoje se conhece e à edificação de uma nova ou de novas alianças entre países. Um projecto de nova revolução levada a cabo pela mobilização social das populações, das massas, dos povos.

Esta conclusão não está assim escrita, preto no branco, em nenhum documento nem em nenhum discurso. Mas está lançada quer na moção da direcção quer nas várias intervenções feitas a culminar com a intervenção final em que Catarina Martins anuncia que o BE pedirá um referendo às regras que gerem a UE no caso de a Comissão Europeia avançar com a aplicação de sanções a Portugal por incumprimento do défice em 2015.

Expliquemos. O BE está preparado para todos os cenários que se coloquem em termos de União Europeia. Isso mesmo foi assumido pela porta-voz nas duas intervenções que fez no palco da Convenção. Mas nem Catarina Martins, nem nenhum dirigente do BE, pediu um referendo sobre a saída de Portugal da UE. E travando entusiasmos revolucionários, Catarina Martins e Pedro Filipe Soares, que representam as duas tendências internas do BE, entraram no pavilhão a balizar as fronteiras discursivas da reunião.

“Temos de ganhar força para, na Europa, exigir mudanças” e procurar “construir uma Europa com as pessoas e não de costas voltadas para as pessoas”, defendeu Pedro Filipe Soares logo à chegada, para avisar que não se pode “confundir um tratado sobre a União Europeia” com “tratados para a desistência da União Europeia”. Também antes de entrar na sala da Convenção Catarina Martins foi clara: “Este não é o momento de os países saltarem com cartadas de referendos, é o momento de por em cima da mesa alternativas pensadas”.

Assumindo o BE como partido internacionalista, Catarina Martins fez a declaração chave da Convenção: “O euro e a União Europeia hoje não são uma solução para o país. São um problema, não para Portugal, mas para todos os países. Mas isso não quer dizer que não resida na Europa uma solução de futuro para todos os países. Não nos enganemos, o tempo não volta para trás, não vamos ser nações isoladas. Agora é preciso dizer que a construção europeia, tal como ela foi feita, não serve.”

E rejeitou desde logo que se avance para um referendo sobre a permanência de Portugal: “Neste momento não ganhamos em achar que as soluções para todos os países são referendos que podem pôr em campos opostos soluções que são todas más. Este é momento de a política assumir responsabilidades e fazer propostas sobre alternativa de construção.”

Ou seja, tal como defendeu referendos no passado ao Tratado de Lisboa e ao Tratado Orçamental e o admite sobre o euro, o BE avisa que, perante sanções, o defenderá como arma de transformação profunda do perfil institucional da Europa unida e na defesa do interesse dos povos.

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