E o diabo não veio

O país sobreviveu a 2016. Nada garante que vá sobreviver a 2017. O diabo, de facto, não veio. Mas o cheiro a enxofre empesta o ar.

Hoje é dia 1 de Outubro e podemos confirmar que belzebu, ao contrário daquilo que Pedro Passos Coelhos havia vaticinado em Julho – recordemos a sua frase histórica: “gozem bem as férias que em Setembro vem aí o diabo” –, não foi avistado em Portugal, nem nos seus arredores. Concedo-me, pois, o direito de decretar oficialmente a não vinda do diabo, lamentando que o líder do PSD deixe mais uma promessa por cumprir, neste caso por manifesta imprudência: Passos Coelho abusou na gravidade da situação e entregou de bandeja ao adversário uma frase infeliz. Anunciar o apocalipse com metas temporais agregadas é assim como anunciar o fim do mundo para 2023 – há sempre uma boa probabilidade de que tal não se venha a verificar e de o vidente acabar a fazer figura de parvo.

Se é certo que PSD e CDS estão obrigados a dramatizar a situação do país, para que quando as coisas começarem a descambar os eleitores tenham fresco na memória os seus avisos repetidos, é evidente que Pedro não pode gritar demasiadas vezes que o lobo está a vir sem que nenhum lobo se veja. Dramatizar a menos é mau; dramatizar a mais é péssimo. António Costa soube, aliás, aproveitar isso muito bem, e a ausência de vestígios do demo tem provocado grande satisfação nas hostes do actual governo. É até possível que estejam a ser organizadas festas anti-satânicas nas sedes do PS e do Bloco de Esquerda, com o patrocínio de Mário Centeno. Não quero de modo algum estragar esse breve momento de felicidade aos apoiantes do governo. Deixo apenas um conselho amigo: cuidado com o excesso de festejos.

O governo e os seus apoiantes estão a confundir capacidade de resistência com estratégia política. A esquerda acha que está a ganhar porque está a aguentar – não porque esteja realmente a chegar a lado algum, ou porque tenha encontrado um caminho alternativo para a sustentabilidade das finanças públicas. Não há qualquer tempo novo para o país, nenhuma página que se tenha virado. A única estratégia política de António Costa é resistir, gerir os problemas do presente e atrasar ao máximo os problemas do futuro. Soluções não existem; existem apenas adiamentos. As cativações não são um exclusivo de Mário Centeno. Todo o governo é uma imensa cativação – cativado à direita pelas regras da União Europeia; cativado à esquerda pelos pactos que assinou com o Bloco e com o PCP.

É por isso que quando Passos Coelho aparece na comunicação social a anunciar a vinda do diabo setembrista ele acaba por fazer um enorme favor a Costa. Passos dramatizou de mais e o governo capitalizou ganhos políticos sem fazer coisa alguma – bastou-lhe, afinal, que o diabo não tivesse vindo. Infelizmente para Costa, não fazer nada é apenas solução durante um período limitado de tempo. O seu governo aproveitou o embalo que vinha de trás para o país continuar a girar em 2016, mas essa estratégia parece ser manifestamente insuficiente para 2017. Ainda que o défice de 2016 consiga por milagre ficar à roda dos 2,5%, ninguém percebe como é que, com as actuais políticas e as limitações nos cortes de funcionários públicos e reformados, será possível atingir em 2017 o 1,4% de défice previsto no Programa de Estabilidade. Daí o risco de a esquerda, e dos seus apoiantes, muitas vezes confundirem resistência com vitória. Não há vitória alguma. O país sobreviveu a 2016. Nada garante que vá sobreviver a 2017. Esse é o grande drama de António Costa. O diabo, de facto, não veio. Mas o cheiro a enxofre empesta o ar.

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