É imoral repor as subvenções vitalícias

PS e PSD estão a tentar mascarar uma decisão política de decisão jurídica. Coisa que lhes fica mal.

Foi na década de 80 que o Bloco Central introduziu a subvenção vitalícia para os políticos, uma aberração extraordinária que José Sócrates e o PS tiveram o bom senso de eliminar em 2005. Esta benesse foi criada em 1985 e permitia aos deputados com apenas oito anos de serviço terem direito a uma subvenção para o resto da vida. Uma década depois, em 1995, o tempo para se ter direito a essa subvenção subiu para 12 anos, mesmo assim bastante mais generoso face aos 30 ou 40 anos que um pensionista qualquer tem de descontar para ter direito a receber uma reforma.

Num determinado momento histórico, numa altura em que grande parte dos deputados exercia o mandato em regime de exclusividade, se calhar até fez sentido atribuir aos políticos algumas benesses, como o subsídio de reintegração. Seria uma forma de evitar que para a política viessem apenas os medíocres que não conseguiram ter um emprego bem pago no sector privado. Uma realidade que entretanto mudou (a parte de haver alguns deputados medíocres no Parlamento é que não mudou).

Foi em 2005 que o Governo de José Sócrates terminou com esta subvenção, mas a lei não foi aplicada de forma retroactiva – ou seja, os deputados que em 2005 já tivessem os 12 anos de funções mantiveram o direito a receber uma subvenção vitalícia de 48% do ordenado base, quando completassem 55 anos de idade. E foi Passos Coelho que no Orçamento para 2014 decidiu colocar um novo travão às pensões vitalícias, aplicando a chamada "condição de recurso" – ou seja, os deputados que tinham um rendimento superior a dois mil euros (excluindo a subvenção) ficaram sem essa prestação. Nos restantes casos, o rendimento ficou limitado à diferença entre os dois mil euros e o rendimento (excluindo a subvenção).

No Orçamento para 2015, o Governo mantinha a mesma formulação. Mas eis que na semana passada surgiram um deputado do PSD (Couto dos Santos) e um outro do PS (José Lello), numa espécie de minibloco central, a sugerirem que os ex-políticos com rendimentos acima dos dois mil euros pudessem recuperar o valor das suas subvenções vitalícias. Em vez do corte anterior, a subvenção (na parte que excede os 2 mil euros) passaria a pagar uma contribuição extraordinária de 15%, tal como a CES que vai ser aplicada às pensões mais elevadas.

A proposta foi ontem aprovada com os votos do PSD e PS, com a abstenção do CDS e com os votos contra do Bloco e do PCP. Não deixa de ser estranho, quando PS e PSD não se entendem sobre centenas de normas do Orçamento do Estado. Acabaram de rasgar o pacto da fiscalidade. Não se entendem sobre a reforma do IRS e a "fiscalidade verde" e não há maneira de se sentarem à mesma mesa para discutir a reforma do Estado. Enfim, coisas em que realmente interessa haver acordo. Mas quando chega a altura de votar sobre a reposição das subvenções vitalícias, de repente nasce uma amizade enternecedora e uma cumplicidade entre os dois maiores partidos da Assembleia da República.

Ficará a cargo de cada um julgar a moralidade (ou não) de se aliviar a austeridade que recai sobre os políticos numa altura em que pensionistas, funcionários públicos e a maioria dos contribuintes continuam a sofrer cortes salariais, a pagar contribuições extraordinárias e a suportar sobretaxas de IRS. Mas são bastante questionáveis os argumentos que Couto dos Santos e José Lello usam para justificar o fim dos cortes.

Primeiro porque equiparam as subvenções vitalícias às pensões normais de reforma. Ora a primeira é um privilégio e a segunda é um direito para o qual as pessoas descontaram ao longo de toda uma vida de trabalho. E, partindo deste erro, os dois deputados então partem para o segundo erro, que é argumentar que o corte das subvenções vitalícias em vigor é inconstitucional. Não se referem a um acórdão específico do Tribunal Constitucional, mas dizem que a jurisprudência do TC “aponta para o carácter não definitivo das medidas excepcionais de ablação retroactiva das prestações, para a garantia igual das expectativas legítimas sobre opções de vida já consumadas e para a sua proporcionalidade e igualdade”.

Traduzindo do juridiquês, são vários disparates de seguida. Primeiro dizem que o TC entende (vá-se lá saber como é que adivinharam o que o TC entende) que medidas excepcionais não se devem prolongar durante muito tempo e que os deputados e políticos merecem receber a subvenção porque criaram expectativas e estavam a contar com ela. Então os funcionários públicos também não criaram expectativas de que iam receber um determinado salário e agora estão a receber um outro bastante mais pequeno? E invocar a igualdade, quando só alguns titulares de cargos políticos recebem a subvenção vitalícia é de uma demagogia vitalícia.

O que estes dois deputados fizeram, com a cobertura dos respectivos partidos, foi tentar mascarar uma decisão política de decisão jurídica. Se realmente tivessem dúvidas sobre a constitucionalidade dos cortes, fariam aquilo que tantas vezes fizeram no passado, que é pedir ao Tribunal Constitucional que analisasse a legalidade da medida. Têm medo que o TC diga que o corte é legal? Infelizmente, tendo os deputados o poder de mudar a lei, e estando a decidir em causa própria, não resta muito a fazer a não ser continuarmos a pagar a sobretaxa de IRS e as contribuições extraordinárias para que não falte ao Estado os 10 milhões de euros que todos os anos esbanja para pagar as subvenções aos deputados para o resto da vida.

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