Dos mortos e da memória

Este esforço para individualizar as vítimas de uma catástrofe, de um atentado ou de uma guerra é comum a todas as culturas onde a preservação do passado é um valor essencial.

Quando visitamos o Memorial às vítimas do 11 de Setembro, em Nova Iorque, encontramos os nomes de todas as pessoas que morreram nos atentados inscritos nos longos parapeitos de bronze que rodeiam as pegadas das Torres Gémeas, agora transformadas em duas enormes piscinas. São 2996 nomes no total, entre vítimas do World Trade Center (2001 e 1993), do Pentágono e do Voo 93. Todas as manhãs, os funcionários do Memorial colocam uma rosa branca no nome de cada pessoa que faria anos naquele dia – birthday roses, chamam-lhes –, convidando os visitantes a saber mais sobre ela: quem era, o que fazia, que família tinha, quais os sonhos que ficaram por cumprir.

Este esforço para individualizar as vítimas de uma catástrofe, de um atentado ou de uma guerra é comum a todas as culturas onde a preservação do passado é um valor essencial. Os muitos memoriais que prestam homenagem às vítimas do Holocausto têm a mesma preocupação: não deixar que os mortos se percam no anonimato dos milhares e dos milhões, por mais esmagadores que eles sejam. “As pessoas não são números”, dizia em 1995 um destacado membro do Partido Socialista que chegou a primeiro-ministro.

É por isso que quando ouço Marisa Matias declarar, no seu comentário da TVI24, que a lista dos mortos de Pedrógão não deve ser pública, “por respeito às vítimas e às famílias das vítimas”, faço figas, por uma vez na vida, para que aquelas sejam apenas palavras cínicas, de mera gestão de um conflito político, e que não correspondam verdadeiramente ao seu pensamento. Seria demasiado triste, demasiado ignorante e demasiado estalinista. “Não se ganha absolutamente nada em ter a lista divulgada”, disse Marisa Matias, demonstrando um espectacular desconhecimento daquilo que é um ser humano, do trabalho milenar para que cada vida seja considerada preciosa, e de como esse trabalho passa necessariamente por dar um nome a cada corpo e uma história a cada nome.

Há uma frase muito citada de Mário de Carvalho que nos alerta para o perigo das generalizações: “Convém não confundir género humano com Manuel Germano.” Mas o oposto também é verdadeiro: as abstracções comovem pouco e não mudam um milímetro o nosso comportamento. O mais precioso é o que nos está mais próximo – não o género humano, mas o Manuel Germano. É por isso que já o Evangelho de Lucas nos oferece a promessa – religiosa, mas também profundamente individualista – de que há um Deus que traz todos os nossos fios de cabelo contados.

Eu já enjoei e já enojei de discutir a importância cívica de conhecer as vítimas do 17/6 e as circunstâncias em que morreram. Não vou voltar ao assunto. Faço, contudo, questão de lamentar mais uma vez a incapacidade de tanta gente em perceber uma coisa tão óbvia. Portugal tem um gravíssimo problema de memória. Não é por acaso que dois dos livros de ensaios mais populares das últimas décadas – O Labirinto da Saudade, de Eduardo Lourenço, e Portugal, Hoje – O Medo de Existir, de José Gil – versam precisamente sobre a conturbada relação do país com a sua memória, e sobre esta dupla dificuldade: 1) perceber o que nos acontece; 2) inscrever os acontecimentos na memória colectiva e evoluir a partir deles. Queda do império, Estado Novo, Sócrates, troika, Pedrógão Grande – qualquer que seja o trauma, nós deixamos com a maior facilidade o passado evaporar-se e as responsabilidades por apurar. A nossa grande especialidade é mesmo essa: inalar o nevoeiro e seguir em frente. Como, mais uma vez, se está a ver.

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