De Paris ao Porto

Considero obscenas as críticas que alguns dirigentes socialistas têm dirigido a Rui Moreira. Se há coisa de que ele não pode ser atacado é de incoerência ou de deslealdade seja em relação a quem for.

1. Como nunca cultivei qualquer tipo de visão messiânica não projecto delirantes expectativas na eleição de Emmanuel Macron para a presidência da República Francesa. Não posso, porém, deixar de reconhecer que fiquei profundamente satisfeito com o sucesso eleitoral de um homem que considero de centro-esquerda e que revelou num momento decisivo uma estatura política pouco vulgar nos tempos que correm. Esse momento correspondeu ao debate que o agora Presidente eleito travou com a sua adversária Marine Le Pen na semana passada. O que teve de extraordinário a prestação de Macron? Algo muito simples, e, contudo, decisivo: uma total indisponibilidade para condescender com a demagogia primária de que se alimentam os extremismos. Essa atitude, que o levou a afirmar sem complexos as suas convicções europeístas e a sua vontade de levar a cabo reformas de concretização difícil no seu país, suscitou o respeito e a adesão de uma larga parte da opinião pública francesa. Marine Le Pen viu-se de repente confrontada com a sua própria nulidade, reduzida ao estatuto de uma pessoa desprovida das condições mínimas para aceder à mais alta magistratura gaulesa. Macron derrotou-a simultaneamente no plano mais abstrato das ideias políticas e no domínio mais concreto das soluções específicas para os principais problemas que afectam a sociedade francesa.

A circunstância de na hora da consagração festiva do novo Presidente se terem entoado sucessivamente A Marselhesa e a Ode à Alegria, símbolo do projecto europeu, tem um significado que não pode ser ignorado. Nesse momento simbolicamente determinante Macron quis uma vez mais deixar claro que não concebe a França fora da Europa nem aceita uma Europa desprovida de uma forte participação francesa. Essa é uma das melhores notícias desta eleição. O renascimento de um eixo franco-alemão devidamente reequilibrado constitui condição imprescindível para o relançamento do projecto europeu nas suas dimensões mais importantes, que vão desde a reformulação institucional da União Económica e Monetária até à consolidação de uma verdadeira Política Comum de Segurança e Defesa. Não terá sido por acaso que tanto a CDU como o SPD saudaram entusiasticamente a eleição do novo Presidente francês. Os alemães sabem que precisam de uma França enérgica com quem possam dialogar de igual para igual, de modo a salvaguardarem um projecto que continuam a considerar fundamental para a salvaguarda dos seus próprios interesses nacionais ? o projecto que a União Europeia representa. Por isso mesmo aguarda-se com especial expectativa este reencontro de dois países que, gostemos ou não, marcarão sempre a natureza da vida política europeia.

A extrema-esquerda europeia e os seus assaz curiosos representantes em Portugal espumam-se em delirantes declarações anti-Macron. Como a imaginação conceptual há muito que desertou dessas bandas, recorrem ao estereotipado palavreado de sempre ? a França afinal de contas elegeu um perigosíssimo neoliberal, clamam. Para essas criaturas tudo o que não alinhe com uma visão colectivista, tudo o que exale o mais leve odor liberal, ou tudo o que não adopte uma retórica absolutamente anti-europeia releva indiscutivelmente de um sinistro neoliberalismo. E perante esse neoliberalismo usam de toda a artilharia pesada, tão pesada quanto arcaica e tão arcaica quanto verdadeiramente indigente do ponto de vista conceptual. É certo que em Portugal essa bolorenta extrema-esquerda abriu momentaneamente uma excepção em relação ao governo do Dr. António Costa. Talvez estejam fascinados pelo perfil psicológico de um optimista irradiante que, no essencial, tem governado de uma forma não muito diferente daquela que caracterizará muito provavelmente a acção futura de Emmanuel Macron; se for essa a razão não se distinguem de forma nenhuma do Presidente Marcelo eleito com os votos da direita portuguesa.

2. Por uma vez na vida cito-me a mim próprio. Em 6 de Outubro do ano passado formulei considerações neste mesmo espaço sobre a questão autárquica no Porto. Passo a transcrever na íntegra o ponto dois do texto então publicado, para o que peço a indulgência dos leitores: “Como já várias vezes aqui escrevi, considero que Rui Moreira tem desempenhado de forma muito satisfatória a função de Presidente da Câmara Municipal do Porto e que o entendimento pós-eleitoral que o movimento independente por si liderado estabeleceu com o PS se revelou útil para a cidade. Compreendi, por isso mesmo, a decisão tomada na semana passada pelo órgão concelhio socialista no sentido de mandatar o seu presidente para iniciar conversações com vista à renovação desse acordo, que teria agora um carácter pré-eleitoral. Um acordo dessa natureza teria necessariamente de conter uma dimensão programática e uma nítida definição da distribuição das responsabilidades políticas. Ora, para que assim sucedesse, teria de haver uma negociação séria e transparente da qual resultasse um compromisso público a submeter ao sufrágio dos cidadãos portuenses. Rui Moreira, ao manifestar, como o fez inequivocamente esta semana numa entrevista à TSF, uma indisponibilidade de princípio para a celebração de qualquer compromisso com os partidos políticos, inviabilizou a solução arquitectada no interior do PS-Porto. É natural que o actual presidente da autarquia não queira abdicar do seu estatuto de independência face à constelação partidária portuense, temendo perder, assim, grande parte da identidade do seu próprio projecto. A circunstância de Manuel Pizarro ser presentemente líder da distrital do PS e figura integrante do núcleo político íntimo do Primeiro-Ministro terá pesado, de algum modo, na decisão de Moreira. A vida é o que é, e assim sendo só resta ao Partido Socialista uma saída digna e consonante com as suas enormes responsabilidades cívicas e políticas ? apresentar uma candidatura própria à Câmara Municipal do Porto”. Era tudo tão óbvio, tinha-se poupado tanto tempo e tinham-se evitado tantas incompreensões.

3. Considero obscenas as críticas que alguns dirigentes socialistas têm dirigido a Rui Moreira. Se há coisa de que ele não pode ser atacado é de incoerência ou de deslealdade seja em relação a quem for. As suas posições foram sempre claras. Foram, aliás, tão claras que suscitaram a minha oposição. O que não é admissível é que aqueles que o endeusaram por mero calculismo ou estiveram calados até sexta-feira passada venham agora descrevê-lo como um autocrata ou um ególatra. Diga-se, aliás, uma coisa em abono da verdade: até à data, Rui Moreira sempre recusou o discurso populista que provavelmente lhe traria alguns réditos eleitorais.

4. Manuel Pizarro, que me parece ter sido mais vítima do que actor neste processo, contará, naturalmente, com todo o meu apoio na sua corrida para a Presidência da Câmara Municipal do Porto. Estou, de resto, convencido de que esta é uma eleição em aberto e que o candidato socialista poderá chegar ao final na condição de vencedor.

Sugerir correcção
Ler 3 comentários