Datchas de Jardim no Porto Santo concessionadas para turismo

Casa onde o ex-presidente madeirense passava férias é propriedade da região. O actual governo formalizou a sua concessão para alojamento local. Albuquerque quis acabar com aquele “absurdo”.

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A casa onde Jardim passava férias por 10 euros por mês João Paulo Martins/Colombo Press

Na próxima vez que Alberto João Jardim quiser passar férias na casa onde ficou no Porto Santo durante Verões a fio, vai ter de gastar bem mais do que os 20 euros de diária que afirmava pagar pela moradia próximo da praia, onde juntava a família no mês de Agosto.

A casa, ou melhor, as casas, já que são duas, em que a segunda era usada também em exclusivo por membros do executivo de Jardim, são património do governo madeirense, que formalizou esta semana a concessão das moradias a um grupo privado, para instalação e exploração de alojamento local.

A decisão foi tomada no início deste mês, depois de dois concursos públicos. O primeiro procedimento não teve interessados, e o executivo de Miguel Albuquerque, perante o interesse público demonstrado pelas duas habitações, abriu novo concurso, que contou com perto de uma dezena de interessados.

A proposta mais alta, de acordo com o governo, veio do Grupo Sousa, um grupo empresarial com vastos interesses na Madeira e em Lisboa, que vai pagar mensalmente 2510 euros pela concessão das duas casas.

A rentabilização daquelas duas moradias, a que a oposição chamava “datchas”, numa alusão às casas de férias usadas pelos altos-dirigentes da ex-União Soviética, foi, desde a primeira hora, um compromisso de Albuquerque quando sucedeu a Jardim no governo.

Na altura, em declarações ao PÚBLICO, o chefe do executivo madeirense considerou um “absurdo” a existência de duas casas de férias para uso exclusivo de governantes, comprometendo-se a acabar com aquela “situação bizarra”. “Nas democracias modernas os membros dos governos eleitos gozam férias como os outros cidadãos, às suas custas”, sublinhou.

Nos dois últimos Verões, as casas estiveram encerradas. A ideia inicial era alienar aquele património, mas questões burocráticas — falta de registo predial, localização em domínio público marítimo — inviabilizaram essa intenção, avançando o governo regional para a concessão.

Esse modelo tem sido utilizado para rentabilizar alguns elefantes brancos herdados da anterior administração regional, mas nem sempre tem sido consensual ao nível político. O hotel Pestana CR7, fruto de uma parceria entre o Grupo Pestana e o futebolista do Real de Madrid, nasceu num desses edifícios abandonados. A Madeira recebe 12.500 euros por mês, durante 30 anos. À partida, parece um bom negócio para um espaço nobre da capital madeirense que estava abandonado desde a inauguração em 2011, mas o facto de ter sido adjudicado um empresário já com uma elevada quota do mercado hoteleiro regional não agradou a todos.

O mesmo acontece agora com as duas casas do Porto Santo. A influência do Grupo Sousa no tecido económico do arquipélago é relevante. Além de controlar o porto do Funchal — tem também interesses no de Lisboa, tanto ao nível da carga como dos cruzeiros —, o grupo empresarial é proprietário do ferry que assegura as ligações marítimas entre as duas ilhas da região e conta já com várias unidades hoteleiras no Porto Santo.

O socialista Carlos Pereira foi o primeiro a verbalizar as críticas ao resultado do concurso. Ressalvando que a concessão foi “aparentemente efectuada com total lisura”, o líder do PS-Madeira argumenta que o executivo deveria ter actuado para evitar o reforço do domínio daquele operador num “mercado pequeno e frágil” como o do Porto Santo.

As críticas de Carlos Pereira sobem de tom, com o vice-presidente da bancada socialista em São Bento a acusar o secretário regional das Finanças, Rui Gonçalves, de estar “agachadinho” perante aquele grupo empresarial.

A resposta do gabinete de Rui Gonçalves também não foi branda. “Total ausência de escrúpulos” e tentativa de “manipular as regras” foram algumas das expressões utilizadas pelo executivo, que reforçou que, das oito propostas recebidas, a do Grupo Sousa foi a mais elevada. O critério do concurso público, lembrou a Secretaria das Finanças, foi sempre o do preço mais elevado.

O deputado Carlos Pereira acusa o executivo madeirense de desrespeitar a lei e manipular os resultados do concurso, para não adjudicar as casas a quem, cumprindo todas as regras definidas, apresentou a melhor proposta.

Férias em família

O concurso era apetecível. Com uma localização privilegiada, no centro da cidade e com acesso directo à praia, as duas habitações contam com uma extensa área envolvente e um court de ténis. Por toda a região existem várias casas do governo — que estão também a ser concessionadas para turismo — que eram utilizadas pela população para pequenos períodos de férias, mediante um pagamento simbólico (dez a 20 euros por dia) para as despesas de manutenção. Bastava inscrever-se e aguardar pela oportunidade.

Algumas, as mais bem localizadas, contavam com uma longa lista de espera, mas as do Porto Santo estavam vedadas aos madeirenses, principalmente em Agosto e na Páscoa, quando Jardim levava a família para aquela ilha.

O ex-presidente inicialmente nada pagava. Depois, assumiu que as férias custavam dez euros por mês, valor que duplicou nos anos mais recentes. A justificação é que estava no Porto Santo a trabalhar, e como optava por não ir para um hotel, ainda estava a poupar dinheiro aos cofres regionais.

Mas as manhãs eram tudo menos de trabalho. Os tradicionais passeios matinais de Jardim pela praia, sempre acompanhado por jornalistas, amigos e membros do governo mais próximos, eram mais lazer. Uma oportunidade para comentar a actualidade política nacional, alimentando a silly season da imprensa local, e muitas vezes a nacional, com polémicas e ataques a Lisboa.

A caminhada terminava invariavelmente num bar da praia, onde, entre petiscos e cervejas, lá saíam mais declarações polémicas. O passeio era já uma atracção, com turistas continentais, no advento das selfies, a não perderem a oportunidade de se fotografar com Jardim.

Desde que deixou a presidência do arquipélago, acabaram-se os passeios pelo areal e as “datchas” têm estado fechadas.

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