Cunhas, favores e soluções

Filhos do povo como são, não admira que os nossos políticos tenham feito da “cunha” “negociação”, dando desse modo legitimidade às suas inconfessáveis manobras.

O ex-ministro da Administração Interna, Miguel Macedo, é mais um político a contas com crimes no exercício de funções públicas. Suspeita-se que tenha usado o seu cargo político para decidir em benefício de determinada entidade (crime de prevaricação), e tenha aceitado determinada oferta para influenciar decisões junto de certas entidades públicas (crime tráfico de influências).

Dito em duas palavras: cumplicidades de “favores” e ”cunhas” que permitem lucrar com as prerrogativas que oferecem os cargos públicos. Em linguagem bem portuguesa quer isto dizer: “eu dou-te uma coisa a ti, se tu me deres uma coisa a mim…”

Os portugueses sempre tiveram uma habilidade muito especial para a meter a sua “cunha” na esfera pública, seja para conseguirem uma consulta médica, seja para o inspector fechar os olhos aos seus negócios quando empregam trabalhadores ilegais. Aquele inegável jeitinho para a pedinchice, aquela arte única para a conversa fiada, é-lhes transversal e ninguém parece ficar incomodado com isso. Ou não fosse tão genuinamente nosso aquele velho manhoso e popular aforismo que “quem não chora não mama.”

Filhos do povo como são, não admira, pois, que os nossos políticos tenham feito da “cunha” “negociação”, dando desse modo legitimidade às suas inconfessáveis manobras, transformando tudo ou quase tudo em legalidade, como seja, por exemplo, convidar amigos para negociar em nome do Estado. Acham-se imunes, crendo que são pessoas respeitáveis, vêem-se acima do comum dos mortais e, como tal, julgam-se senhores de tudo, não se preocupando minimamente se transgridem a lei ou se se entregam a vulgares práticas desonestas de poder.

Já sei, dir-me-ão, que a política, com os ordenados que paga, não dá para enriquecer. Claro que não dá, toda a gente sabe. Mas o que nem toda a gente imagina é o que dá o status, o poder de estar ligado a ela, à dita política. Aos que não têm paciência para esperar, gera dinheiro que até pode ser ocultado na conta offshore de um qualquer amigo, e aos que tiverem paciência (até nem é preciso muita), podem vir a ter o mundo a seus pés. Pense-se em percursos que começaram em simples ministérios, passaram pelas altíssimas instâncias da União Europeia, já vão agora nas influentes universidades privadas dos EUA e que, amanhã, só terão o céu como limite.

Senhores do poder, os políticos fazem amigos facilmente, de preferência amigos empresários, amigos a quem não se pode negar um favor. Afinal é um pedido de amigo, não é verdade? De “cunha” em “cunha” o barco vai navegando, fazendo com que os parcos recursos do País sejam utilizados para incrementar o clientelismo, promover acordos e ganhar concursos, outrora públicos, hoje muitos dos quais decididos por ajuste direto. No fim de contas, pergunta-se, mas que mal existe em ser um amigo a ganhar uma empreitada de obras públicas? Não estará essa empreitada, pelo facto de ter sido entregue a um bom amigo, em boas mãos? Claro que está, dizem eles entre si!

No fundo, vistas bem as coisas, a corrupção até é vantajosa: ganha o empreiteiro, ganham os trabalhadores do empreiteiro e ganha o político. Ganham todos, pensam eles! Mas, como nunca podem ganhar todos, é uma utopia, quem perde é o pagador, que é sempre o dinheiro público, porque no preço do contrato até o suborno costuma ser incluído. Esta teia de vantagens é sempre tecida sobre regras de jogo que desviam os recursos das necessidades sociais básicas, cria desigualdades na distribuição de incentivos e no acesso aos mercados, interfere nos processos eleitorais e promove e oculta outros crimes, muitos dos quais até de natureza mais grave.

A ciência jurídica debate-se com um importante problema, que é também uma interrogação: como é que deve ser fiscalizado e controlado o exercício do poder público? Sempre defendi um processo penal garantista, que proíba a obtenção de provas ilícitas e a aplicação de penas excessivas e não ressocializantes. A realização da justiça reside num «direito penal mínimo», isto é, em penas adequadas à conduta criminosa, mas sujeitas a limites.

Dentro desse enquadramento fazem falta, no nosso processo penal, dois instrumentos fundamentais: o estatuto do arrependido e os acordos-sentença. O estatuto do arrependido consiste na atribuição de um prémio de pena ao cúmplice ou ao autor de crimes pela confissão e colaboração com a investigação judicial, permitindo desvendar teias criminosas. O que colaborar com a investigação policial na identificação dos demais autores ou cúmplices, desde que a informação seja realmente importante e relevante, beneficiará de redução de pena, de pena em regime aberto (RAVE) ou de perdão de pena.

Nos crimes económicos, ou vulgarmente conhecidos por crimes de colarinho branco, é indispensável a figura do arrependido.

Os acordos-sentença consistem numa suspensão do processo judicial para o agente do crime, através de um acordo quanto à pena a aplicar e ao montante da indemnização para ressarcir os lesados, à semelhança da Plea Bargain do direito norte-americano. Assim, o Ministério Público, ao encerrar o inquérito com a elaboração do despacho de acusação, notifica os arguidos para, num prazo de cinco dias, se pretenderem, iniciar a fase das negociações que se prolongaria pelo prazo de 15 dias, visando a aplicação de uma pena que suspenderia o processo judicial. Essa transação penal permitiria que as penas sugeridas pelo Ministério Público fossem negociadas com os arguidos e seus mandatários, face aos indícios probatórios carreados para os autos.

O acordo a que se chegasse preveria sempre uma confissão parcial ou total dos factos descritos no despacho de acusação: uma pena, suspensão da execução da prisão ou não, dependendo da gravidade dos factos praticados, e ainda a perda das coisas, direitos ou vantagens obtidas por via da prática dos factos ilícitos, ou o pagamento ao Estado de uma compensação. O mesmo procedimento seria utilizado para as empresas acusadas, aplicando-se-lhes penas de multa e compensações. O juiz aferiria da validade da confissão dos factos pelos arguidos e competir-lhe-ia homologar o acordo-sentença. Caso as negociações se iniciassem e, depois, saíssem frustradas, o processo seguiria diretacmente para julgamento, não se realizando a fase da instrução.

Eis como vejo que se deverá atacar um dos cancros mais letais da sociedade portuguesa, a “cunha”, o “favor”, “a mão que lava a outra”, que, em mãos de políticos e de seus amigos, se transformam sempre em tráfico de influências. Se, pelo contrário, nada se fizer, o que acontecerá é que a indiferença seguirá o seu pernicioso caminho e ninguém mais acreditará nas instituições de um regime pasto da gula dos mais improváveis apetites.

Advogado

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