Critérios da UE para a decisão sobre a Agência do Medicamento favorecem Lisboa

Ligações aéreas, escolas bilingues para 648 crianças filhas dos funcionários e 30 mil dormidas em hotéis por ano são alguns dos pré-requisitos para a candidatura e afastam "descentralização”.

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Conselho Europeu decidirá em Outubro para onde vai a Agência do Medicamento Enric Vives-Rubio

Num documento, de 18 páginas, a secretaria-geral do Conselho Europeu estipula as regras para o procedimento de relocalização das agências europeias actualmente com sede no Reino Unido. Entre elas está, como é patente, a muito debatida Agência Europeia do Medicamento (AEM), que Portugal quer acolher depois do Brexit – a outra é a Agência Bancária Europeia, a que Portugal não se candidata.

São seis os critérios para a tomada de decisão, que deverá ter lugar no conselho de assuntos gerais de Outubro próximo, e dois deles são aparentemente inconciliáveis com a ideia de levar a agência para cidades como Braga ou Coimbra (propostas por deputados do PSD). Um tem a ver com a “acessibilidade”, que é vista pela União Europeia em função da proximidade de um aeroporto com ligações internacionais, existência de transportes públicos que façam a ligação entre o aeroporto e as instalações da agência e capacidade de alojamento para os membros e visitantes: “Este critério diz respeito à disponibilidade, frequência e duração dos voos de ligação entre as capitais de todos os estados-membros e os aeroportos próximos da localização, e (…) dos transportes públicos de ligação entre esses aeroportos e a localização, bem como a qualidade e quantidade do alojamento. Em particular, este critério obriga à manutenção do actual volume de reuniões da Agência.”  

A "acessibilidade" afunila a escolha portuguesa entre Lisboa e Porto, as únicas cidades servidas, ao mesmo tempo, por aeroportos com ligações internacionais, metro entre a gare e o centro da cidade e uma capacidade hoteleira capaz de satisfazer as exigências de uma agência com esta dimensão. A AEM tem 890 funcionários (mais de metade dos quais casados e com familiares) e só num ano, em 2015, reservou 30 mil noites em hotéis para visitantes que participaram nas suas reuniões. Os requisitos obrigam à disponibilidade, em alguns momentos, de 350 quartos de hotel num só dia. Os números que acompanham a definição dos critérios são claros: a AEM mantém cerca de 500 reuniões anuais e recebe 36 mil visitantes (funcionários das agências nacionais, cientistas, profissionais de saúde, representantes da indústria).

Segundo os dados da Associação de Hotelaria de Portugal, o Porto tem, neste momento, 79 hotéis (para este critério não contam os alojamentos equiparados) com 6090 quartos. Em Lisboa há 192 unidades e 20.080 quartos. A oferta em Lisboa é maior (e está a crescer a um ritmo superior), mas o preço médio no Porto é mais baixo. Há uma outra diferença que favorece Lisboa: o número de rotas para capitais europeias é maior no aeroporto de Lisboa.

O critério seguinte limita ainda mais drasticamente as hipóteses: “A existência de escolas multilingues e de ensino europeu que possam satisfazer as necessidades educativas das crianças do quadro de funcionários:” A AEM calcula que o seu quadro de pessoal tenha a seu cargo 648 crianças, com menos de 18 anos – é o que consta no caderno de encargos do Conselho. Este é um número problemático para as poucas, e lotadas, escolas multilingues de Lisboa e Porto. Mas o ministério da Educação, contactado pelo PÚBLICO; revelou que já está em curso o processo de estudo para a criação de uma nova escola europeia, na região de Lisboa. “No final do ano de 2016, o Ministro da Educação emitiu um despacho para que se estudasse a criação de uma Escola Europeia em Portugal, nomeadamente na região de Lisboa, tendo em vista servir os descendentes dos funcionários das duas agências europeias já instaladas nesta cidade”, anuncia o ministério. Essa decisão pode ser acelerada, assegura o ministério, “caso Portugal acolha a relocalização da Agência Europeia para os Medicamentos”, por forma a ser concretizada a tempo.

Este despacho do ministério da Educação é anterior à decisão do Conselho de Ministros, de 27 de Abril, que escolheu Lisboa como candidata ao acolhimento da agência. Mas acaba por ser um argumento importante, uma vez que os restantes critérios não são tão específicos, nem diferenciam tanto as candidaturas. O primeiro é a necessidade de haver uma continuidade imediata do trabalho da agência (o que obriga a um planeamento eficaz e a uma mudança rápida). Outro estipula o acesso para os familiares dos funcionários ao mercado de trabalho local e à assistência médica. O quinto critério é ainda mais intangível e determina que a nova localização deve ser atractiva para futuros funcionários de que a agência venha a necessitar, caso alguns dos actuais decidam permanecer em Londres. O último critério joga contra Portugal (ver infografia), porque determina a “diversidade geográfica” da implantação das agências europeias, beneficiando os países que não tenham nenhuma (Portugal tem duas, a da Droga e a da Segurança Marítima, ambas em Lisboa, no Cais do Sodré).

Foi com base nestes critérios que a comissão da candidatura portuguesa defendeu, segundo avançou a agência Lusa, que Lisboa “era a única que reunia condições mínimas de êxito da candidatura". E foi este o argumento que terá, segundo a Lusa, convencido António Costa.

Mas Lisboa está longe de ser uma das favoritas nesta disputada relocalização. Um estudo da consultora KPMG, que não segue os critérios de avaliação da União Europeia, mas os da Federação Europeia de Associações da Indústria Farmacêutica (EPFIA) coloca a capital portuguesa no 15º lugar em 16 cidades avaliadas.

Se os critérios escolhidos fossem os da indústria, Paris ganharia, seguido de perto por Copenhaga, Estocolmo e Munique. Lisboa é penalizada pela falta de dinamismo científico na área da saúde, ficando em último lugar nas cidades com mais empresas de ciências da vida e sofre, por arrasto, por Portugal ser o país que menor percentagem do PIB dedica à investigação científica e fica em penúltimo no ranking da biotecnologia.

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No entanto, nenhum destes aspectos estará em avaliação pelos países europeus no Conselho de Outubro. Os que são coincidentes, como os das escolas internacionais, também não colocam Lisboa numa posição confortável. A capital portuguesa tem nove, Madrid tem 31. No número de voos internacionais directos, Lisboa tem um terço de Copenhaga e um quinto de Paris e Amesterdão.

Por isso, pode haver algum “centralismo” nos critérios escolhidos pelo Conselho e pela Comissão Europeia. Estes parecem favorecer cidades que já dispõem de infra-estruturas e uma rede de ligações internacionais. E como o resto do País tem, em Portugal, razões de queixa de Lisboa, a esta escala a capital portuguesa pode invejar muitas das suas congéneres europeias. Haverá razões para isso, transformando alguns destes números da AEM em símbolos de euro.

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