Como sair do lixo e continuar sujo

Sim, as previsões da direita falharam no que ao diabo diz respeito. Só que as previsões da esquerda também falharam quanto à receita para sair da crise.

Deixem-me começar por ser generoso nos meus elogios: a subida do rating de Portugal deve-se a um esforço colectivo onde, como nas guerras, o mérito pode ser distribuído por toda a gente. É mérito do povo, é mérito dos municípios, é mérito dos Presidentes da República, é mérito do PSD, é mérito do CDS, é mérito do PS, e, nos últimos anos, é até mérito do Bloco de Esquerda, do PCP e da CGTP, que se têm fartado de engolir sapos de austeridade com um sorriso nos lábios. Nada disto seria possível sem esta união nacional (salvo seja), porque todos os partidos, admitindo pela frente ou consentindo pelas costas, aceitaram o apertar do cinto e alinharam no cumprimento escrupuloso das regras europeias.

Esta rodada geral de encómios não tem como objectivo diminuir o lugar de António Costa na fotografia, até porque quem está no Governo é quem colhe os maiores louros. Costa e Centeno conseguiram aquilo que muito poucos consideravam possível (eu, desde logo): a manutenção do país numa trajectória de redução prioritária do défice e da dívida (em função do PIB), através de uma negociação habilidosa com a sua esquerda, que fez desaparecer a contestação social, e a construção da narrativa do “virar da página de austeridade”, que basicamente consistiu na substituição de impostos directos por impostos indirectos, e de restituição de rendimentos aos reformados e funcionários do Estado em troca das cativações. Bem vistas as coisas, é um jogo de soma zero, só que a mesma austeridade com outros ingredientes já não parece exactamente a mesma austeridade, e foi aí que António Costa ganhou o jogo e conquistou a esquerda: ofereceu-lhe um discurso de “novas políticas” que elas puderam apresentar aos seus eleitores como uma grande vitória.

É certo que dez euros a mais no ordenado são dez euros a menos na bomba de gasolina, mas como a maior parte do país está cheio de vontade de acreditar em tempos melhores, a escolha parece ter valido a pena, como bem demonstram as sondagens. A isto chama-se habilidade política, coisa que António Costa tem para dar e vender. Com Pedro Passos Coelho estaríamos provavelmente a crescer mais e com um défice mais baixo, mas o povo estaria menos feliz e a esquerda teria tomado conta da rua.

A única coisa verdadeiramente grave em tudo isto — e a razão pela qual continuamos sujos mesmo tendo saído do lixo — é o desfasamento entre a realidade e a narrativa sobre essa realidade, que conduz a uma série de avaliações demagógicas sobre aquilo que nos tem acontecido. Sim, as previsões da direita falharam naquilo que ao diabo diz respeito. Só que as previsões da esquerda também falharam quanto à receita para sair da crise. Portugal está a crescer e a baixar o défice em condições que a própria esquerda garantiu que nunca cresceria: com o investimento público mais baixo da História e sem qualquer reestruturação da dívida.

Em resumo: nós temos a esquerda a aplicar uma receita essencialmente de direita fingindo que é uma receita de esquerda; e temos a direita a ter de engolir o sucesso da esquerda porque nunca a imaginou capaz de tamanho golpe de rins. Esta extraordinária jigajoga é o Portugal de 2017. E estamos nisto: as coisas até podem estar a correr bem, mas a discussão sobre porque estão a correr bem continua completamente enviesada. Resultado: quando chegar a próxima crise vamos andar a cometer os erros de sempre, porque quem teve o mérito de chegar até aqui não se atreve a admitir o caminho por onde veio.

 

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