Cavaco e o cavaquismo (II)

Para percebermos o que quis (e o que ainda quer) a direita para Portugal no contexto da derrota da ditadura e da impossibilidade prática de regressar a um modelo sociopolítico autoritário, é no primeiro Cavaquismo que nos temos de concentrar.

Apesar de termos tido (que aguentar) dois Cavaquismos, aquele que contará para a história é o primeiro: uma década (1985-95) de um projeto de restauração histórica, que criou novo a partir do velho, que conseguiu impor-nos um futuro que rompeu com o passado revolucionário recente mas repondo/adaptando alguns dos processos interrompidos por este. A única direita triunfante da nossa história democrática foi o primeiro Cavaquismo; o segundo (2006-16), em compensação, foi o de um ex-chefe de Governo que, transitado para uma Presidência de muito menos poder, apostou-o todo na proteção das opções liberais e austeritárias de um novo projeto das direitas para Portugal, que, contudo, (ainda) não vingou.

Onde se autodescreve o Cavaquismo na história contemporânea portuguesa? O horror que as direitas portuguesas sentiram perante a intensidade única do processo que levou ao fim da ditadura e da guerra, e que implantou entre nós a democracia por via revolucionária, fê-las inventar a tese de que a democracia resultou, não do 25 de Abril - e muito menos da luta contra a ditadura -, mas sim da luta contra a própria Revolução. Nas palavras deliberadamente ofensivas de Vasco Graça Moura, o intelectual cavaquista por excelência, "o 25 de Abril foi obra de um punhado de descontentes corporativos, de um punhado de tansos bem-intencionados e de um punhado de ideólogos feitos à pressa, todos manipulados por um punhado de agentes soviéticos que (...) tomaram conta da revolução e transformaram forças armadas dignas desse nome numa tropa-fandanga que envergonharia qualquer país do 3º mundo. (…) Não devemos nada aos militares que não trouxeram democracia nenhuma." ("Portugal e o passado", in DN, 10.4.1994). Cavaco faz parte desse universo de gente que, sem ter jamais mexido um dedo contra a ditadura salazarista, acha que a democracia se deve ao 25 de Novembro e não ao 25 de Abril, mas quis, contudo, acrescentar um feriado com o seu nome na sua versão muito particular da História: o dia da sua primeira maioria absoluta, o 19 de julho de 1987, que "abriu um novo ciclo histórico" e que "ficará a marcar a história da nossa democracia" (discurso de 17.8.1987).

O Cavaquismo, que coincide e se confunde com a primeira década de integração europeia, retomou e atualizou um processo de modernização conservadora da economia e da sociedade portuguesas gerado pelo Marcelismo (1968-74), com quem o Cavaquismo partilhou uma parte dos gestores da política económica, baseada, antes de mais, na aliança/colaboração do Estado com os grandes grupos económicos, reconstituídos/reestruturados a partir das privatizações iniciadas com ele, descritos como capazes de assumir a liderança do capital português em processo de internacionalização. Pelo caminho, deixou morrer uma grande parte da pequena empresa, de cujo elogio, contudo, se enchiam os discursos de Cavaco, mas que um social-darwinismo ("quem puder aguentar, sobrevive; quem não puder, morre") atirou para a berma da concorrência internacional. Por outro lado, e como Salazar, que, nos anos 30, fez acompanhar de retórica corporativa a sua ofensiva sangrenta contra os sindicatos livres, Cavaco assestou todas as baterias contra o movimento sindical e a esquerda que se reivindicava da Revolução ao mesmo tempo que introduzia uma retórica neocorporativa da concertação social entre "empresários" e trabalhadores que já não se ouvia desde antes de Marcelo Caetano: não surpreende que um homem de direita, que jamais na vida fez uma greve ou se sindicalizou, denunciasse o que achava ser "o enfrentamento, quantas vezes artificial, entre trabalhadores e empresários"; mas profetizar que "a nova empresa terá de ser a síntese entre os interesses nacionais, os interesses dos empresários e os interesses dos trabalhadores" (discurso de 15.4.1986) não era mais do que uma salazarice updated para os anos 80.

Cavaco foi o beneficiário, e não o responsável, de um crescimento económico que resultou da saída da recessão de início dos anos 80, do fim austeridade FMI/Bloco Central de 1983-84 e do fluxo dos primeiros fundos europeus. Neste contexto, o padrão cavaquista foi o da velha máxima da direita: só se pode conceder mais rendimento aos trabalhadores se os patrões puderem enriquecer numa proporção superior. É por isso que em 1990, a meio do seu governo, o peso dos salários no rendimento nacional continuava a descer em fase de crescimento da economia!

Esse agravamento da desigualdade na repartição da riqueza veio acompanhado da crise da representação democrática. A "Democracia de sucesso" de que Cavaco falava foi o arranque de um modelo de (não) participação democrática feito de abandono e de omissão: à dessindicalização e à crescente transformação dos partidos do poder (o PSD, acima de todos) nas máquinas recrutadoras de oportunistas e distribuidoras de privilégios que hoje conhecemos, acrescentou-se a crescente abstenção e a perceção da inutilidade do voto para uma boa parte dos eleitores. Cavaco chegou ao poder com uma participação eleitoral de 75%, depois de dez anos em que tinha variado entre 79% e 92%. Ganhou, é certo, duas maiorias absolutas, mas precisamente porque cada vez menos portugueses votavam (de 72,6% em 1987para 66,3% em 1995).

Onde o Cavaquismo conquistou a totalidade da direita e fez o pleno da cultura nostálgica e reacionária portuguesa foi no seu discurso sobre a identidade histórica e sobre os modelos de sociedade. O Cavaco que quis comemorar os "Descobrimentos (...) para em Portugal ser reavivado o orgulho de ser português", para que "a imagem de Portugal no mundo corresponda à grandeza da nossa história e à realidade e potencialidade das nossas coordenadas presentes» (discurso de 7.1.1987), é o mesmo que achou que a Nossa Senhora de Fátima teria "inspirado" os avaliadores da troika (PÚBLICO, 15.5.2013), que num 10 de Junho quis “sublinhar, acima de tudo, a raça, o dia da raça, o Dia de Portugal” (PÚBLICO, 9.6.2008), ou que, em 1992, condecorou "por serviços excecionais e relevantes prestados ao País" dois dos agentes mais sinistros da PIDE (António Augusto Bernardo e Óscar Cardoso). Foi tudo menos surpreendente que vetasse politicamente legislação que consagrava a liberdade de decisão no aborto ou a igualização de direitos para casais do mesmo sexo, porque questionava uma moral sexual tradicional, homofóbica e sexista, que as direitas históricas sempre assumiram.

Para percebermos o que quis (e o que ainda quer) a direita para Portugal no contexto da derrota da ditadura e da impossibilidade prática de regressar a um modelo sociopolítico autoritário, é no primeiro Cavaquismo que nos temos de concentrar. Ao lado dele, Sá Carneiro, a AD, Barroso, Santana e Passos, foram pouca coisa - sobretudo, é certo, porque todos eles foram derrotados pelas urnas e pela contestação.

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