Bona, a cidade entre a história e a política

É o berço da democracia parlamentar alemã do pós-guerra e foi capital durante quase cinco décadas. Na cidade natal de Beethoven a bicicleta é rainha e na universidade estudaram Karl Marx e Friedrich Nietzsche.

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Museu de História Contemporânea de Bona Kai Pfaffenbach/Reuters

Quem procure não apenas a história, mas os bastidores onde a história e as estórias individuais se desenlaçam, encontra em Bona pano para muitas mangas. Em jeito de prólogo conto-vos uma. Ele está lá há mais de duas décadas, batido pelo vento e pela chuva. É um dos muitos encontros com a História que Bona oferece.

Nos jardins da embaixada da então União Soviética, em Bona, perfilavam-se estátuas dos heróis nacionais. A queda do Muro e o fim de um desejo de infinitivo a que se chamou comunismo, fez delas inventário sem dono. Numa dessas noites lendárias, que podiam constar num romance de John Le Carré, um cidadão de Bona - por razões de descrição não vou detalhar -, que mantinha boas relações com o embaixador soviético, convenceu-o, depois de vários vodkas, a doar-lhe uma cabeça gigante do pioneiro do espaço Juri Gagarin. Nessa mesma noite a colossal cabeça sairia da embaixada no tejadilho de um Fiat 500 e subiria ao telhado de uma habitação na Beethovenallee. A mulher do admirador do cosmonauta só descobriu o novo ornamento no telhado decorridas três semanas. Ficou furiosa, mas o marido foi peremptório: “Se o Gagarin sair eu saio também”. Ficaram os dois até hoje. Passava por lá todos os dias para buscar a minha filha mais nova à escola primária e não conseguia deixar de sorrir com o implausível.

Quando me desafiaram para explicar como é viver em Bona ocorrem-me de imediato três palavras: história, organização e bicicletas. Começo pelas bicicletas. A antiga capital alemã, com cerca de 320 mil habitantes, dispõe de três mil quilómetros de ciclovias – além de semáforos específicos para ciclistas e possibilidades de estacionamento – e pretende até 2020 aumentar em 25% estas vias. Em termos práticos, para mim isto significa enviar, sem dores de cabeça, as filhas de bicicleta para a escola e demorar 15 minutos de casa ao trabalho. Bona deu-me horas de vida. Na coreografia da cidade o espaço é fatiado entre o Reno e os duzentos hectares da Rheinaue, o maior dos parques de Bona, junto ao rio, que na Primavera deslumbra numa aguarela de cores e é durante todo o ano ponto de encontro de skaters, corredores mais ou menos ambiciosos, de namorados, de casais com filhos ou de iogis.

Como em todos os municípios alemães quem chega a Bona como novo residente tem obrigatoriamente de se registar. O processo é rápido e inclui um pacote de boas vindas: um guia da cidade, bilhetes para espectáculos de teatro e musicais e vales de descontos vários. Recebe-se também o calendário de recolha de lixo, porque se há assunto que os alemães levam muito a sério é a reciclagem e a limpeza urbana. Todas as marcações para assuntos que envolvam a câmara são feitas online, evitando-se assim desnecessário tempo de espera.

O que têm em comum Marx, o filósofo que matou Deus e o Papa?

Na centenária Universidade de Bona estudaram Karl Marx e Friedrich Nietzsche - entre professores e antigos alunos contam-se sete prémios Nobel e o anterior Papa Bento XVI foi lá professor. Todavia o filho mais afamado da cidade é Ludwig van Beethoven. De todos os cantos do planeta chegam turistas para seguir as pistas do compositor e para visitar a casa onde nasceu, em 1770, ou para assistir ao festival anual, a Beethovenfest (cuja directora é bisneta de Richard Wagner).

Durante quase cinco décadas a pacata Bona foi a capital federal da Alemanha. Escolhida pela mais prosaica das razões: Konrad Adenauer, o primeiro chanceler alemão do pós-guerra, morava do outro lado do rio e dizia que aos 73 anos já não tinha idade para grandes deslocações. O antigo bairro federal – que inclui o primeiro Bundestag, o Palácio Schaumburg, a Villa Hammerschmidt  e o bungalow do chanceler – são o símbolo da primeira democracia bem sucedida na Alemanha.

Bona continua a ser a segunda sede do Governo alemão - ministérios como o da Cooperação e Desenvolvimento ou o Tribunal de Contas estão aqui sediados, além mais de 150 entidades governamentais - e tornou-se na sede de empresas do DAX como a Deutsche Telekom ou mundiais com a DHL. Desde 1996 que Bona se tornou uma cidade das Nações Unidas. Nada menos que 18 agências ONU estão aqui instaladas, desde a Convenção Quadro sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC) até a Secretaria da Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação (UNCCD), passando pela Secretaria do Acordo pela Preservação da População de Morcegos Europeus (Unep/Eurobats). Desde a queda do Muro de Berlim que uma lei especial, a Lei Berlim-Bona, regula a partilha de poder e de instituições entre a nova e a antiga capital.

Um boletim de voto com mais de um metro

Actualmente a antiga capital é governada por um democrata-cristão, Ashok-Alexander Sridharan, filho de um diplomata indiano e de mãe alemã, que se tornou no primeiro presidente de câmara alemão de origem estrangeira. Anteriormente, o Partido Social-Democrata (SPD) havia estado à frente do município durante 21 anos.

A idade mínima para votar nas eleições autárquicas, que se realizam de quatro em quatro anos, é de 16 anos e o voto não é obrigatório mas sim facultativo. Todos os cidadãos europeus podem participar nas mesmas e é uma experiência que vale a pena. Eu explico. O sistema eleitoral alemão é muito complexo, o que faz com que cada eleitor possa ter tantos votos quantos o do número de pessoas que compõem os grémios autárquicos - este número de votos pode ultrapassar a centena e meia, e os boletins de voto são maiores que as páginas de certos semanários, chegando a atingir mais de um metro de largura. Nas autárquicas contam tanto, ou mais, os candidatos que os partidos e o eleitor pode escolher livremente o número de votos que dá a cada formação política.

Camião do atentado vai para o museu?

A Haus der Geschichte (Casa da História, museu de história contemporânea) é um local imperdível para quem se interessa pela história da Alemanha. Neste museu, cuja fundação se deve ao historiador e antigo chanceler Helmut Kohl e que desde a abertura de portas de 1994 já ultrapassou a fasquia dos 10 milhões de visitantes a entrada é gratuita.

Na exposição permanente há documentos e objectos históricos - a caneta com que foi assinada a Lei Fundamental alemã ou o bocadito de papel onde J.F. Kennedy rabiscou a fonética do “Ich bin ein berliner” -, é lá que se encontra a mota oferecida a Armando Rodrigues de Sá, carpinteiro, e “emigrante um milhão” do programa germânico de acordos laborais.

Agora discute-se se o camião usado no atentado terrorista de Berlim, que fez 12 mortos e mais de 50 feridos integrará o expólio do museu. A direcção do museu de história contemporânea alemã ainda não decidiu, argumentando que é preciso um distanciamento temporal do ataque, mas considera uma eventual exposição relevante para o país. Esta incorporação divide opiniões na Alemanha. "Quando um tema tem relevância social, e este é o caso, ele pertence à nossa história, queiramos ou não", afirma Hans Walter Hütter, presidente da fundação Haus der Geschichte. Entre os mais de sete mil objectos expostos encontram-se várias peças relacionadas ao terrorismo. Entre elas estão objectos ligados à Fracção do Exército Vermelho (RAF) e uma bomba utilizada pelo grupo neonazista Clandestinidade Nacional-Socialista (NSU) num atentado em Colônia, em 2004. O museu também acolhe partes das fachadas do World Trade Center.

A rua das cerejeiras

O meu lugar preferido em Bona? É uma rua, a Heerstrasse, onde o mundo não tem nada para me explicar. Não tenho olhos a medir e perante o esplendor das cerejeiras em flor nesta rua de Bona invento uma bússola que me leva ao Japão. Algumas ruas são uma espécie de casa errante, quando as percorremos até ao final, mais que o fora encontramos o dentro.

Os japoneses retribuem o donativo da natureza celebrando o início da floração no ritual do “Hanami”, que consiste essencialmente em pousar o olhar, contemplar as cerejeiras em flor, distrair-se de si e descobrir o regaço da vida.

Há séculos que esta flor, frágil e efémera, é a flor dos samurais e é a essência do seu lema: viver o presente sem medo.

A fugacidade da Sakura, que a qualquer momento pode ser levada pelo vento, é uma das mais belas imagens da fragilidade da vida e do seu esplendor, da sua bondade.

“Acontece que o mundo é sempre grávido de imenso” e na cerejeira habitam infinitos. Quando a graça da flor parte, como uma paixão apressada, aos que têm a paciência de esperar oferece-se o fruto. Doce, sensual, como um vestido que se desabotoa ou um amor infinito. Que há sentidos que despertam quando se percorre uma rua até ao fim e se encontra o além do efémero.

Helena Ferro de Gouveia nasceu em Bissau, estudou Comunicação Social na Universidade Nova de Lisboa e Direito da Comunicação em Coimbra. Foi correspondente do PÚBLICO na Alemanha entre 1998 e 2007. Viveu até Julho de 2017 em Bona.

Uma vez por semana vamos contar como se vive em algumas cidades europeias, com as autárquicas em vista, procurando exemplos que podemos ou devemos seguir

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