Até ao tutano

Não há actividade parlamentar politicamente asséptica.

O desabafo do deputado do PS e ex-líder da JS Pedro Delgado Alves é um retrato corajoso da degradação da imagem que os portugueses fazem da Assembleia da República. “Há uma altura em que a paciência se esgota”, disse o deputado para proclamar: “Os cidadãos estão fartos de nós. Fartos de nós até ao tutano.” E para que ninguém tivesse dúvidas sobre de quem falava, acrescentou: “Nós colectivamente, aqueles que são incapazes de colocar o serviço público à frente e que mancham o debate público.”

Pedro Delgado Alves perdeu o filtro e disse o que nenhum deputado se atreve a dizer alto e bom som. Fê-lo quando ele próprio perdeu a paciência com deputados do PSD no âmbito dos debates preparatórios para uma comissão de inquérito parlamentar sobre a gestão da Caixa Geral de Depósitos (CGD) desde 2000. E nem sequer interessa para este raciocínio se Pedro Delgado Alves tinha razão ao acusar os deputados do PSD de estarem a abusar da paciência dos portugueses.

O que importa é que o disse no contexto de uma discussão sobre a abertura de um inquérito parlamentar à gestão da CGD num momento em que, mais uma vez é ao Estado que vai competir a obrigação de responder financeiramente para uma operação de recapitalização daquele banco público. Ou seja, mais uma vez, os portugueses, através dos seus impostos e do dinheiro que eles geram para o Orçamento do Estado, vão ter de pagar os desmandos e o desnorte com que a gestão bancária andou a brincar com o país. E desde que se ouviu falar, pela primeira vez, na proposta do PSD para a formação de uma comissão de inquérito à situação na CGD, o PS tem usado de vário tipo de manobras dilatórias para evitar que a comissão se constitua. Isto com o argumento máximo de que é mau para a recapitalização da Caixa, que é como quem diz, é mau para o negócio, que os deputados decidam fazer perguntas e saber exactamente quem fez o quê à frente da CGD.

É verdade que, pelo menos em parte, o PSD está interessado em explorar e expor o que foram as ligações à Caixa dos governos socialistas de José Sócrates e a nomeação de Armando Vara como administrador. Mas é também verdade que esse propósito do PSD é absolutamente legítimo e não pode ser travado com argumentos pseudomoralistas. Faz parte das regras parlamentares que uma comissão de inquérito tem como função investigar com rigor um assunto. Mas não está em lado nenhum escrito ou dito ou indiciado, nem nas regras parlamentares portuguesas, nem, por maioria de razão, nas regras democráticas, que os deputados perdem a sua posição e orientação política quando se trata de um inquérito parlamentar. Não há actividade parlamentar politicamente asséptica. A tentativa de exploração política de inquéritos parlamentares faz parte da natureza dos mesmos. É, aliás, essa mesma exploração política da situação que faz o PS ao dizer que um inquérito parlamentar põe em causa a estabilidade necessária à recapitalização da Caixa.

Quem tem um pouco de memória da Assembleia da República ou leu sobre a sua história, sabe que é uma constante a realização de inquéritos e que muitas vezes eles permitem por a nu aspectos novos, bem como explicar contornos políticos e clarificar ambiguidades. E até concluir por claras ilegalidades, como foi o caso da comissão de inquérito à corrupção à Junta Autónoma das Estradas, feita em 1998, que apurou actos criminosos e cujo relatório final foi enviado então à Procuradoria-Geral da República, que se limitou a arquivar.

Assim como é do domínio comum que foram já vários os inquéritos parlamentares sobre instituições bancárias. É provável que a grande maioria dos actuais deputados não o saibam mas essa tradição começou em 1994, era então primeiro-ministro Cavaco Silva, quando o Parlamento criou uma comissão de inquérito à privatização do Banco Totta & Açores, envolvendo figuras como José Roquette, António Champalimaud e Mário Conde do grupo espanhol Banesto – as razões para investigar já eram muitas e ainda não tinha chegado ao fim a saga do Totta com este a ser comprado pelo Santander de Emilio Botin. Mais recentemente foi a vez do BPN, depois do BCP e ainda há menos tempo o BES, sendo que decorrem ainda os trabalhos da comissão de inquérito ao Banif. E que se saiba ninguém no Parlamento se preocupou com os danos com que, por exemplo, a comissão de inquérito ao BES tivesse consequências na tentativa de venda do Novo Banco.

Ora o que é triste é que o PS tente dificultar a constituição de uma comissão de inquérito, quando é manifesto que a situação da Caixa é fruto de irregular e má gestão. Parece até que querem proteger aquilo que administradores nomeados pelos seus governos andaram a fazer. E é essa imagem de amiguismo que os políticos dão de si mesmos que degrada a imagem pública que estes têm e aumenta o fosso entre os cidadãos, os partidos e as instituições políticas. Um fosso que está a ser escavado, “até ao tutano”.

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