As populações agradecerão

Há uma permissividade estranha em relação à acumulação da presidência de juntas com outras funções políticas de eleição ou de confiança.

Pronto. As listas de candidatos estão entregues e a campanha eleitoral para as autárquicas de 1 de Outubro está pronta para ir para a estrada. Muita tinta vai correr nos próximos dois meses, enquanto o país vai ser calcorreado pela campanha dos múltiplos candidatos dos diversos partidos às 308 câmaras e assembleias municipais, bem como às 3092 juntas de freguesia, depois da reestruturação administrativa que comprimiu as anteriores 4260 freguesias.

O poder local tem um significado peculiar e um peso específico no edifício institucional e de governação democrática do país. São as autarquias que compõem a rede através da qual, ao nível de mais proximidade, se concretiza a gestão política do território nacional. Uma proximidade que pode ser de quase relacionamento pessoal e individual. Há certamente autarcas que conhecem bem — até pelo nome próprio — muitos dos cidadãos que governam. Um grau de conhecimento pessoal certamente diverso quando falamos de regiões mais ou menos populosas.

Não é o mesmo governar uma câmara com a dimensão de Lisboa — administrativamente mais complexa do que alguns ministérios — ou uma pequena câmara na desertificada faixa interior do país. Mas se as grandes cidades são um desafio inegável, gerir uma pequena câmara com apenas alguns milhares de pessoas, muitas vezes populações envelhecidas, em territórios deixados para trás pelo desenvolvimento e a “vida moderna”, é uma tarefa, mesmo uma missão, que requer coragem, dedicação e saber.

Na rede complexa das autarquias, as juntas de freguesia têm a função de cuidar daquilo que pode ser classificado como a epiderme do poder local. É o seu nível mais baixo, aquele que retalha o mapa do país em mais de três mil quadradinhos, triângulos, hexágonos, as várias formas geográficas que o próprio terreno impõe como fronteiras limítrofes. São as juntas que tratam de assuntos tão essenciais como a limpeza das ruas ou o acompanhamento das populações idosas, esta última questão é central no interior despovoado, onde quase só restam os mais velhos.

É por isso — pela importância da especificidade das funções das juntas na gestão de aspectos que podem parecer menores, mas que são de importância central para o quotidianos das populações — que me parece incompreensível a falta de profissionalismo e o desleixo em que a lei permite candidaturas de pessoas que manifestamente não podem ter tempo nem disponibilidade para cumprirem o seu papel autárquico.

Falo concretamente da possibilidade de poderem desempenhar funções como presidentes de juntas pessoas em regime de acumulação, mais precisamente ocupando outros lugares de eleição política ou de confiança política. Olhando para o panorama da Assembleia da República, é possível perceber que há cinco dezenas de deputados que se candidatam a órgãos de poder local: câmaras, assembleias municipais e juntas de freguesia.

Ora, a lei — no caso o Estatuto dos Deputados — estabelece há mais de uma década, no ponto 1 do Artigo 20.º sobre “Incompatibilidades”, que “são incompatíveis com o exercício do mandato de deputado à Assembleia da República os seguintes cargos ou funções” e nomeia na alínea g) as funções de “presidente, vice-presidente ou substituto legal do presidente e vereador a tempo inteiro ou em regime de meio tempo das câmaras municipais”. Ou seja, o legislador percebeu que não era possível participar na gestão de uma câmara e ser em simultâneo deputado. Se forem eleitos nas autárquicas, terão de abdicar do mandato em São Bento.

Já em relação às assembleias municipais não há proibição e admite-se que não haja, pois as suas reuniões são no máximo uma vez por semana, o que permite deslocações periódicas aos concelhos.

Há, porém, uma permissividade estranha em relação à acumulação da presidência de juntas com outras funções políticas de eleição ou de confiança. É sabido que o ordenado de presidente de junta pode ser baixo e é variável de acordo com a dimensão demográfica a que obedece. Mas, se o salário é baixo, então não se candidatem e procurem outro emprego, ou fiquem-se pelos rendimentos auferidos com os cargos políticos que já ocupam.

Vejamos alguns exemplos, no concreto o caso de cinco deputados que são agora candidatos autárquicos. Pelo PSD, o deputado Pedro Pimpão candidata-se à Junta de Freguesia de Pombal, no concelho com o mesmo nome, a qual é presidida por este partido.

No PS, há quatro casos. O deputado Pedro Delgado Alves recandidata-se à Junta do Lumiar, em Lisboa, onde já é presidente. Também o deputado Francisco Rocha se recandidata à junta a que actualmente preside, a de Vila Real, em Trás-os-Montes. Já o deputado João Paulo Correia recandidata-se à Junta de Mafamude, no concelho de Vila Nova de Gaia, onde foi eleito presidente, mas designou um substituto legal. Por último, o deputado Luís Soares candidata-se pela primeira vez à junta de Caldelas, no concelho de Amares, presidida pela coligação PSD-CDS.

Mas há pelo menos mais um caso paradigmático da permissividade reinante, trata-se do presidente da Junta de Freguesia de Alvalade, em Lisboa, André Caldas, que acumula a presidência da junta socialista com as funções de chefe de gabinete do ministro das Finanças, Mário Centeno.

Será que todos eles, se forem eleitos, terão tempo, capacidade e disponibilidade para dignificarem os seus mandatos de autarcas? Vão gerir as juntas como? Através do telemóvel? Não seria de os legisladores alargarem a proibição do exercício do mandato de presidentes de juntas em acumulação com cargos de eleição ou de confiança política? As populações agradecerão.

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