As novas lideranças políticas

Surgem, da esquerda à direita, sem uma posição ideológica particular, mas com a firme intuição de que ecoar a vontade do povo e alimentar as necessidades e expectativas mais básicas da população os conduzirá à vitória eleitoral sobre os adversários.

A ausência de líderes políticos tem sido frequentemente apresentada como fazendo parte da essência das democracias nas últimas décadas. Teremos, finalmente, encontrado a resposta para esta aparente deficiência? E, em caso afirmativo, são os resultados os esperados? A resposta à primeira pergunta pode ser positiva, mas acarreta consequências que são, no mínimo, preocupantes.

Sófocles, numa reflexão sobre as paixões individuais dos estadistas e daqueles que a eles se opõem, afirma que Soberano e Seguidor desenvolvem relações de lealdade e de desafio. Creonte, o rei de Tebas, na Antígona, reivindicava em sua defesa: "É impossível conhecer a alma, o sentir e o pensar de quem quer que seja, se não o virmos agir, com autoridade, a aplicar leis". Se a obediência e confiança eram as principais características da liderança política, o desafio era a arma do seguidor, tanto em regimes autocráticos como em regimes democráticos. O que testemunhamos hoje é uma profunda remodelação dessa característica intrínseca da liderança política, uma mudança na alma dos estadistas: o desafio é, agora, a arma dos líderes.

A natureza da liderança política foi mudando significativamente, mas o sucesso das democracias no século passado provocou uma transformação sem precedentes. E o advento das democracias de massas, na segunda metade do século XX, fez o resto. O líder político era o equivalente quimérico do visionário portador de tocha que conhece ou criava o caminho para um destino desejado. Totalmente compatível com regimes autocráticos ou especialmente centrados em personalidades fortes, esse indivíduo deveria fornecer orientação a grupos e nações. Com um papel simples de explicar, este legado influenciou os primeiros paradigmas de liderança em contextos democráticos. Embora sob um regime diferente, com outras regras, limitados por um sistema de controlo constitucional ??e dependentes de processos eleitorais, os líderes políticos puderam, ainda, desempenhar o seu papel tradicional. Mais do que isso, esperava-se que se comportassem precisamente dessa forma.

No entanto, as sociedades democráticas tendem a promover a ambiguidade como a mais próspera estratégia de liderança. As práticas contemporâneas de liderança dificilmente poderiam ter estado mais distantes das tradicionais formas coercivas de exercício de poder e autoridade. Foram, ainda, sobre poder, mas este foi substancialmente transformado. A liderança em democracia passou a ser, na sua essência, o exercício de procura de consentimento, mais do que o da imposição da força. Do despontar das democracias até ao evangelho triunfante, nos últimos anos, das virtudes da liderança democrática, poucas décadas passaram. Na sua essência estava, agora, a necessidade de ser percebido como líder pelos outros, sendo que nesse novo contexto este exercício se tornou na arte de seguir a multidão, de se comportar de acordo com as expectativas dos seguidores. Os portadores da tocha não eram mais os visionários, mas sim os especialistas em seguir multidões.

Se, neste segundo período, a expectativa básica era a de que as democracias sobreviveriam aos líderes, uma vez que estes estavam profundamente enraizados na vontade das pessoas (mais facilitadores da acção colectiva do que puros governantes), a chegada de novas formas de liderança, em plena segunda década do século XXI, revela uma outra abordagem, onde os líderes são mais fortes do que a própria democracia. Não precisam mais da capacidade de se adaptarem à contingência do contexto político e à vontade dos seguidores. Passam a ser capazes de manobrar o contexto e, na falta de novas liturgias apropriadas de reconhecimento, já que a democracia permanece enquanto processo de escolha, fazem-nas substituir por uma espécie de ritual mimético: os eleitos são os eleitores.

Os sistemas políticos não acompanharam o ritmo destas transformações e o mundo mudou mais rápido do que o conjunto de instituições que mantêm a democracia a funcionar. Os novos líderes políticos são aqueles que hoje estão particularmente capacitados para entender estas transformações e para encontrar o caminho, sob o nome de uma compreensão populista da democracia, emergindo em modos - muitas vezes - messiânicos. Surgem, da esquerda à direita, sem uma posição ideológica particular, mas com a firme intuição de que ecoar a vontade do povo e alimentar as necessidades e expectativas mais básicas da população os conduzirá à vitória eleitoral sobre os adversários. Estes líderes são proficientes no uso de um certo desencanto com a política e, até, do sucesso de uma cultura antipolítica do século XXI, dando voz aos novos desinteressados da coisa pública - os “idiotas” na Grécia Antiga. Eles são a personificação das massas no poder. A liderança política nas democracias de massas está, portanto, a entrar vertiginosamente numa terceira era. Esta nova geração oferece governantes erráticos, imprevisíveis nas acções e, frequentemente, promotores políticas contraditórias. O seu vazio ideológico não é substituído por um poder tecnocrático ou burocrático, mas sim pelo retorno do desempenho carismático. A este, em formas tradicionais de liderança, correspondia um traço de personalidade que permitia aos líderes persuadir os seguidores do caminho a escolher. A sua manifestação mais recente é a de um mecanismo cujo único fim é garantir poder e autoridade.

Haverá alternativa? Não é absurdo considerar a democracia sem líderes como outra das tendências contemporânea mais relevantes. As cidades inteligentes, as políticas orientadas pelas tecnologias, os processos de democracia directa, a auto-regulação comunitária, o activismo cidadão, os demos à escala do bairro, são todas possibilidades experimentadas numa nova forma de organizar a política. Nestes casos a liturgia da liderança é substituída pelos rituais da multidão. Mas com ou sem indivíduos para exercer controlo, o futuro das democracias é incerto.

Ainda assim, este retrato não pressupõe, necessariamente, um futuro onde o retorno de ditaduras seja esperado. No entanto, as democracias tal como as conhecemos terão certamente de se adaptar. Estas mudanças trazem novas perspectivas sobre a própria natureza da liderança política. A primeira é a de que a democracia tende a ser incompatível com lideranças fortes. Isto é particularmente evidente quando as instituições não são maduras, quando a cultura cívica é fraca, ou mesmo quando as expectativas face aos resultados da governação democrática não são satisfeitas. A segunda é a de que os nacionalismos estão vivos. A ameaça da instabilidade, da insegurança e do desconhecido, conduz os indivíduos a procurar a segurança dentro de suas fronteiras de identidade - reais ou imaginárias. A terceira é consequência de tudo isto: o papel da liderança política nas democracias evoluiu da preservação das instituições para a preservação dos líderes. Possivelmente, num futuro próximo, exigiremos a preservação da própria democracia.

 

 

 

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