Aquele dia triste em São Bento

Não devemos embarcar em campanhas hostis; mas também não podemos ser cúmplices do inaceitável.

Há dias assim. O dia 31 de Março fica, tristemente, como um dia definidor. A forma como a Assembleia da República reprovou dois votos moderados sobre uma sensível questão de direitos humanos em Angola chocou a opinião pública e a generalidade dos portugueses. Estamos entre esses portugueses: chocados.

Ver o CDS-PP e o PSD votarem ao lado do Partido Comunista Português contra qualquer manifestação de discordância face às severas penas de prisão a que foram condenados 17 jovens angolanos que pacificamente exprimem divergência política é impossível de explicar – e de compreender. Ou, então, um gesto que deixa tudo explicado.

Todos os países da CPLP nos merecem cuidado e atenção especiais. A proximidade que todos têm com Portugal justifica-o, assim como o interesse em não alimentar crispações, nem perturbar o normal desenvolvimento institucional. Mas não podemos confundir as coisas. Não podemos baralhar os conceitos, sobretudo em questões fundamentais e momentos definidores.

Tomar distância ou exprimir crítica não é hostilidade, nem antagonismo. Demonstrar consideração e praticar respeito não é assumir cumplicidade. Não devemos embarcar em campanhas hostis; mas também não podemos ser cúmplices do inaceitável.

Todos estes casos libertam facilmente a emoção. Emoções justas, sejamos claros. Quem não sente indignação por ver jovens longamente presos por terem sido apanhados a ler um livro – não tem o coração no sítio certo. Quem não se comoveu com a greve da fome de Luaty Beirão e não experimentou ansiedade pelo desfecho – não tem sensibilidade. Quem não se inquietou com outras greves da fome de companheiros do mesmo caso – não conhece, não é a palavra, é o próprio sentimento de solidariedade. Quem não seguiu com inquietação aquele julgamento e várias peripécias – é porque teve de desviar o olhar. Quem não se chocou com a tremenda brutalidade das sentenças, que feriram os 17 com penas desde os dois anos e três meses aos oito anos e meio de cadeia – está esquecido não só do sentido da medida, mas da própria ideia de humanidade. Quem não se surpreendeu com o facto de a pena mais elevada de duríssimos oito anos e meio de prisão ter sido sentenciada ao autor do livro, que não estava proibido – é porque perdeu, se alguma vez teve, noção de lei e de justiça.

Sim, todas as emoções poderiam soltar-se. E, nesse risco, cumpre contê-las, entre Estados amigos e países-irmãos. Importa medir o verbo, calibrar a palavra, moderar o tom, afastar qualquer ofensa. É o momento mais alto da política. É o momento mais nobre da diplomacia. Saber traçar uma linha que, por um lado, sinalize distância e crítica face ao reprovável e, por outro, evite, afaste qualquer cumplicidade com o inaceitável, ao mesmo tempo que abra e anime perspectivas de esperança positiva quanto ao futuro.

É muito difícil conseguir a proeza desse equilíbrio. Mas, caso raro e feliz, o Ministério dos Negócios Estrangeiros tinha-o conseguido numa declaração, enxuta e calibrada, que mereceu também o alinhamento do Presidente da República. Faltava apenas a Assembleia da República, que tinha a tarefa mais facilitada – há que ter presente o princípio da maior liberdade parlamentar, quer porque não responde em matéria de política externa, quer porque os partidos podem ser mais livres e de voz mais solta que os governos. Mas a Assembleia da República falhou. Pelo voto conjugado do PCP e – pasme-se – dos CDS e PSD, de novo coligados, agora com outro parceiro de ocasião.

De que serve apostrofar, retoricamente, o PCP como o “mais estalinista da Europa” para, depois, votar com ele nas mais nítidas recaídas desse “estalinismo”?

Alguns dirão que foi “pragmatismo”, um dos chavões da direita que não é direita e do centro que não é centro. Mas nem isso é verdade. O que se passou foi mostrar falta de princípios e de valores. Pois de pragmatismo deram mostras o PS e – pasme-se – até o Bloco de Esquerda.

No caso do voto do BE, o que custava votar a favor ou, ao menos, abstermo-nos no ponto que “condena a punição dos activistas angolanos”? O que custava aprovar que se “apela a que, nos termos previstos na legislação da República de Angola, a tramitação do processo obedeça aos princípios fundadores do Estado de Direito, incluindo o direito de oposição por meios pacíficos às autoridades constituídas”, em linha com a declaração do Ministério dos Negócios Estrangeiros? E o que custava concordar que se “apela à libertação dos activistas detidos” ou, ao menos, não o chumbar? O que custava votar, ponto por ponto, em separado, deixando passar o mais incontestável?

No caso do voto do Partido Socialista, partido do governo, que tinha a posição mais difícil, o que levou a reprovar a posição que “lamenta a situação a que se assiste e que atenta contra princípios elementares da Democracia e dos Estados de Direito fazendo votos para que ela seja corrigida”?

Bastava ao CDS abster-se e o voto tinha passado. Não representaria qualquer ofensa, nem melindre. Houve intenção propositada de chumbar tudo.

Ao recordarmos a Declaração de Princípios do CDS e o humanismo personalista que professa, ao recordar o longo e contínuo trabalho de tantos anos do CDS em prol da democracia, do Estado de direito e dos direitos humanos no mundo, na Europa e nos países-irmãos da CPLP, experimentámos perplexidade e surpresa. E, em boa verdade, também vergonha.

Não podemos ser indiferentes.

Ex-líderes do CDS-PP

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