Almeida é longe de mais

O caso da Caixa de Almeida é mais uma prova acabada da insensibilidade com que o país encara uma parte significativa da sua população mais frágil, distante e esquecida.

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LUSA/MIGUEL PEREIRA DA SILVA

A displicência, quase desprezo, com que a maioria dos representantes da classe política está a encarar a luta dos habitantes de Almeida contra o encerramento do balcão da Caixa é o exemplo acabado da hipocrisia do discurso que todos gostam de articular sobre “o interior”. Do CDS das causas rurais ao PCP das lutas pela protecção dos mais desfavorecidos, todos os partidos desertaram da discussão, todos olharam com desdém urbanita e burguês para as manifestações de um autarca desesperado e de umas centenas de moradores que julgam ser instrumentalizados pelos caciques lá da terra. Ninguém se deu ao cuidado de tentar perceber se a perda de um balcão da Caixa numa vila longínqua, desertificada e cada vez mais pobre como Almeida é mais um prego cravado na morte económica e demográfica do concelho – claro que é. Até o Presidente-Rei, sempre próximo das pessoas, se limitou a encolher os ombros depois de ter percebido que Paulo Macedo, o novo presidente da Caixa, não quer criar uma excepção para Almeida e “abrir uma caixa de Pandora”.

O dilema em cima da mesa é muito próprio dos nossos tempos. De um lado, a opção legítima de uma administração que, forçada a cortar custos na estrutura da Caixa, escolhe umas dezenas de balcões país fora para encerrar; do outro, o instinto de sobrevivência de uma pequena comunidade envelhecida que olha para o desaparecimento da Caixa como “uma humilhação só comparável à invasão de Almeida pelos franceses”, de acordo com uma reportagem do JN nesta terça-feira. Se a Caixa fosse uma entidade privada, exclusivamente sujeita à racionalidade económica, dependente da vontade de accionistas privados, a questão estaria encerrada desde o princípio. Mas a Caixa é, como orgulhosamente o Bloco, o PS e o PCP gostam de proclamar, um banco público. E, sendo público, deve ter em consideração uma visão alargada do interesse nacional. Ora se há Governo que nos últimos anos se esforça em associar o interesse nacional à recuperação das zonas mais deprimidas, se há um primeiro-ministro que, justamente, não se cansa de lembrar que os desequilíbrios territoriais do país são um dos seus principais estrangulamentos é este Governo e é este primeiro-ministro.

A equação de Almeida falha porque Almeida não tem força política para se fazer ouvir. Uma coisa é Rui Moreira protestar contra o fim das rotas a partir do Porto decretado pela empresa meio-pública que é a TAP, outra é António Baptista Ribeiro ir a Lisboa pedir contas e ficar à porta da administração da Caixa. Com os seus 3836 eleitores, com 451 idosos por cada 100 jovens, com apenas 626 alunos de todos os ciclos a frequentarem as escolas, Almeida é um grão de areia insignificante na grande máquina dos interesses que faz girar a política. O seu magnífico forte militar, a candura das suas ruas interiores, a sua memória de resistência a invasões externas e o seu posicionamento estratégico junto à fronteira são tudo heranças de um passado que não existe. Se Almeida tivesse uma milésima parte da força política do funcionalismo público, teríamos os partidos da esquerda a debitarem mil e uma razões em favor das suas causas e os partidos da direita a desancarem na coerência da “geringonça”.

Mas, Almeida não é nada disso. É apenas uma mão cheia de milhar de pessoas que se indigna por perceber que em vez de um balcão digno da Caixa tem apenas agora uma “caixinha” onde duas funcionárias se acotovelam junto a um terminal do multibanco. Numa terra onde as receitas municipais se ficam apenas pelos 12 milhões de euros anuais (em 2015) há-de ser difícil encontrar actividade económica suficiente para garantir a rentabilidade daquele balcão. Mas era interessante saber que prejuízo teria a Caixa por alimentar quatro ou cinco postos de trabalho em Almeida, pagar uma renda e as despesas de funcionamento. Talvez viéssemos a descobrir que o salário de um único dos seus gestores de topo dava para pagar todo o prejuízo. Mas, sim, bem se sabe que estes argumentos pecam pela demagogia.  

Percebe-se que António Costa e o seu ministro das Finanças tenham pudor em impor ao presidente da Caixa as opções da sua gestão. Uma das maravilhas da nova Caixa é que deixou de ser um palco do nepotismo e da troca de favores patrocinada pelo poder político. Mas, há muitas maneiras de influenciar decisões. Com negociação e habilidade, talvez fosse possível encontrar uma alternativa. Se a Caixa é um banco público não pode fechar os ouvidos ao interesse público – ou então, privatize-se a coisa e acabe-se com esta hipocrisia. Entre o balcão da Caixa na Assembleia da República que tem muito movimento e o balcão da Caixa em Almeida que tem pouco movimento, é mais importante para o país o de Almeida. Porque os senhores deputados e demais clientes têm muitas alternativas na vizinhança; porque os cerca de 3000 pensionistas de Almeida não usam a internet nem tem os mesmos meios para tratar das suas contas em balcões mais distantes.

O caso da Caixa de Almeida é assim mais uma prova acabada da insensibilidade com que o país encara uma parte significativa da sua população mais frágil, distante e esquecida. A luta dos seus habitantes, obstinada e sentida, devia ao menos lembrar-nos que quando se tem tão pouco, qualquer coisa como um balcão, quatro empregos, uma réstia de sentimento de pertença ao país e um nadinha de solidariedade fazem muita falta. Mas para o Governo que criou uma Unidade de Missão para a Valorização do Interior, que reverteu (parcialmente) a decisão absurda de fechar tribunais, para partidos useiros e vezeiros em reclamar para si a representação da vontade dos mais desprotegidos, Almeida não tem cabimento. Um balcão é apenas um balcão, ouve-se e lê-se um pouco a eito; a Caixa não tem de ter balcões em todo o lado, repete-se a cada passo; ou se reestrutura o banco público ou se se atender aos lobbies políticos não se vai a lado nenhum, diz-se.

A lição de Almeida é o testemunho do desinteresse de uma parte do país por outra parte do país. Almeida já é quase Espanha. Abater Almeida para dar resposta a um prejuízo acumulado de 3900 milhões de euros é a mesma coisa do que abater um elefante com uma fisga de grampos, mas em última instância não é de contas que se trata nesta polémica: é da dignidade e do direito de seis mil pessoas em reclamarem-se parte de um país. Eles continuam a protestar e com razão. Talvez o seu protesto faça lembrar os deputados com balcão ao lado do hemiciclo que, para os seus concidadãos de uma velha vila beirã, o exercício trivial de levantar o cheque da pensão poderá tornar-se um gesto demasiado difícil.    

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