A trumpificação das direitas

Será mesmo certo que ninguém podia prever que viríamos a ter em 2017 um Trump na Casa Branca? Não, não era fácil prevê-lo, mas o certo é que a farsa se instalou no poder. Dificilmente se encontraria alguém tão reality show e portanto tão ligeiro (a graçola de invadir o México), tão marcado pela arrogância (a crítica à Austrália pelos refugiados), pela grosseria (as mulheres), pelo ódio (a defesa da tortura), pelo interesse próprio (os negócios da filha, as suas próprias empresas), ou pela vulnerabilidade (a apreciação de Putin e o ódio à China). Rodeado de generais e bilionários, Trump comporta-se como um adolescente mimado com um tweet nuclear nas mãos e uma ansiedade que reage a cada anzol num segundo.

Mas o verdadeiramente notável é que, se não se podia prever Trump, já não se pode antecipar nada. O efeito da globalização financeira é esse mesmo: tudo o que era sólido se desvanece no ar. A globalização devastou os pilares do funcionamento institucional do capitalismo moderno e, desse modo, abriu as portas a todos os fantasmas trumpistas. Criou a crise dos regimes tradicionais (depois da crise de Itália e de Espanha e do “Brexit”, em França talvez só reste um candidato à direita, Macron, um aventureiro fora dos velhos partidos). Criou uma crise dos governos, pois não governam. Alinhou poderes regionais, que temem a democracia como a peste. Incentivou mecanismos punitivos, como as regras do euro, para sacralizar a lógica TINA (“não há alternativa”).

Assim, criou um constitucionalismo despótico e manipulatório que é a nova ordem das coisas. Ora, esta ordem precisa de recrutar arautos. Ela deve ser reproduzida intensamente, deve ser banalizada mesmo pelas mais atarantadas figuras políticas, deve convidar os que nela vêem uma oportunidade de ascensão, deve criar um novo senso comum de agressividade e de alinhamento — em que tudo é possível. Pacheco Pereira chamou a atenção para este esforço de trumpificação das direitas portuguesas e que terá consequências profundas. O CDS ficará mais atrevido e, com o PSD, inventarão uma austeridade que tenha como argumento humilhar os de baixo, como se viu no debate do salário mínimo.

Rui Ramos, uma das luzes do neoconservadorismo do Observador, indigna-se contra esta crítica, nela descobrindo um ataque subterrâneo à “direita democrática e liberal, muito temida pelas oligarquias instaladas como eventual agente de reformas”. Como cabe, para Ramos em guerra não se limpam as espingardas e é tempo de resistência: “Os democratas liberais — não só à direita, mas à esquerda — precisam de resistir a este delírio de guerra civil [o delírio é a “divisão do mundo entre Trump e os seus inimigos”], a esta militarização do pensamento (...) em que seríamos obrigados a tomar, não as posições que correspondem aos nossos valores, mas os postos de combate de uma fantasia niilista.” Paulo Rangel, que pretende um estatuto mais respeitável, dedica-se antes ao entretenimento de argumentar simultaneamente que o trumpismo não existe e que, como existe, mora na esquerda. Não precisa de ser verdade, mas também não se esforça por ser bem apanhado; é antes um jogo floral em que o nevoeiro sobrou como última defesa.

Temos portanto uma direita ora trumpificada (os seus temas são os que servem para o realinhamento eleitoral, veja-se Fillon), com o argumento último de que o alerta antitrumpista é um ataque à cruzada ilustre da direita liberal (Ramos), ora argumentando que, se há trumpificação, são outros (Rangel). Não é grande defesa.

E é que não é precisa nenhuma defesa. A direita, a direita que conta, está confortável com a agressividade trumpista. É disso mesmo que precisava para renascer. Habituemo-nos.

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