A troika (também) fomos nós

Os Governos de Sócrates e Passos não só tinham margem de manobra negocial com os credores internacionais, como obtiveram com a crise um pretexto para aprovar medidas impopulares. Estas são algumas das conclusões de um estudo de dois investigadores da Universidade Nova.

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Os governos de Passos e Sócrates foram analisados pelos estudiosos Nuno Ferreira Santos

O tema, e o título, têm uma ressonância tipicamente portuguesa. Mas o estudo foi publicado no European Journal of Political Research, no inicio do ano, e mais recentemente surgiu no blogue da London School of Economics. Vem assinado por Catherine Moury, professora de Ciência Política, belga, e Adam Standring, doutorando, inglês. Trata de um “caso de estudo paradigmático: Portugal, o ‘bom aluno’ da troika”.

Desde Janeiro de 2014, Moury e Standring entrevistaram 21 ministros, secretários de Estado e chefes de gabinete dos governos PS e PSD-CDS, que estavam em funções durante a crise, e vários representantes dos credores internacionais - um do FMI e três da Comissão Europeia -, além de três parceiros sociais e sete deputados da oposição. A juntar a estas entrevistas, presenciais e sob anonimato, os autores recolheram documentação e discursos políticos, leram a imprensa e cruzaram todos estes dados para terem "uma compreensão total do que aconteceu atrás de portas fechadas, em reuniões internacionais". O resultado é o artigo “Ir além da troika: poder e discurso nas políticas de austeridade em Portugal".

A sua leitura proporciona revelações surpreendentes. "É óbvio que os governos estavam constrangidos. Mas havia margem de negociação. Essa margem foi escondida para apresentar as medidas como inevitáveis e para retirar as decisões da esfera política", afirma Catherine Moury. A troika, concluem os autores, “permitiu a alguns ministros passar medidas que eles desejavam em privado mas que não conseguiriam aprovar ‘em tempos normais’”. Ou seja, os governantes "usaram a crise da dívida soberana para ultrapassar, estrategicamente, a resistência às reformas”.

E isso aconteceu de várias formas. Um ex-secretário de Estado do Governo de Sócrates afirma: “Em mais do que uma ocasião, propostas políticas que tinham vindo, por exemplo, do ministro das Finanças, e que não tinham sido aceites em Conselho de Ministros, regressavam depois nas propostas da Comissão [Europeia]”. Mas, no fundo, a proposta vinha de dentro do Governo.

Um ministro do Governo de Passos Coelho explica de outra maneira: “Por vezes é difícil ter a força política para fazer certas coisas e a troika ajuda a justificá-las. Por exemplo, há certas medidas na revisão da legislação laboral, como a redução das indemnizações por despedimento, que são muito difíceis de discutir com os parceiros sociais e, por isso, é útil haver pressão da troika para as poder implementar. Nós, no Governo, concordamos que é necessário fazê-lo mas reconhecemos a dificuldade política.”

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Catherine Moury diz-nos que estes exemplos estão em linha com o que ouviram de todos os entrevistados. "O que emergiu destas entrevistas é uma história clara, porque todos diziam o mesmo. Estavam convencidos que era uma coisa boa, que era o melhor para Portugal." A única diferença é a convicção com que o faziam, consoante fossem do PS ou do PSD-CDS: "Aconteceu nos dois governos, mas notei mais congruência ideológica no de Passos Coelho."

O estudo afirma isso mesmo: "Em vários graus, todos os três partidos que estiveram no Governo partilhavam visões liberais sobre a economia."

E se Sócrates afirmava que as medidas impostas por este tipo de programas exigiam uma agenda liberal que ele não estava disposto a aceitar, havia no seu Governo ideias bastante diferentes. Um secretário de Estado afirma: “A maioria do memorando da troika são medidas que o Governo queria aplicar, a vasta maioria."

Outra revelação importante é a de que as negociações do memorando - assinado em 2011 pelo Governo com o FMI, o BCE e a Comissão Europeia, com o aval, traduzido m cartas de ompromisso, de PSD e CDS - foram isso mesmo, negociações. “Nenhum dos participantes viu a negociação como um diktat dos credores internacionais.”

Depois das eleições, com o Governo de Passos Coelho, a margem negocial manteve-se, mas só era aproveitada na medida em que se adequasse à visão política interna. “O que emerge claramente é que o Governo de centro-direita aproveitou a oportunidade oferecida pelo resgate para aprovar reformas que queria desde o início, indo além do acordo original com os credores internacionais.” E que, apesar de estar na oposição, o PSD teve um papel importante nas negociações: "Também descobrimos que as preferências mais liberais do PSD tiveram algum impacto nas políticas incluídas no memorando final”

Nessa altura tornou-se também claro para Catherine Moury que havia um facto diferente no resgate português. "Não houve vergonha, não houve um discurso 'foi a União Europeia que obrigou'." O jogo do passa-culpas, sobretudo para Bruxelas, foi muito menos do que pressupunham as expectativas iniciais dos investigadores.

O primeiro-ministro podia atribuir culpas ao Governo anterior (com o argumento de que herdou um país na pré-bancarrota) ou então mostrar-se empenhado no caminho do memorando, como se fosse essa a sua própria escolha, mas nunca apontava o dedo aos credores, nota Catherine Moury. “O discurso de Passos Coelho variou conforme o tempo e a audiência para o qual era feito” - por exemplo, se fosse para uma plateia de militantes, diria que a "culpa" era de Sócrates; se fosse uma entrevista ao Financial Times, diria querer ir mais além nas reformas. “Paulo Portas, por exemplo, era muito mais adepto da tese do passa-culpas, indo tão longe como chamar ao resgate ‘protectorado’ e à sua conclusão ‘libertação’.”

Apesar desta diferença, nota Moury, as entrevistas revelam que na coligação "havia muito menos conflitos com a troika do que aparecia na imprensa". Os assuntos eram mais pacíficos do que por vezes transparecia.

O que volta a juntar Sócrates e Passos é a consciência de que aqueles tempos excepcionais lhes garantiam, também, um poder excepcional. “Deu aos executivos uma justificação legítima para concentrar poder nas suas mãos.” E que poder foi esse? O de usar a troika como argumento de autoridade perante o Parlamento e os parceiros sociais, na discussão política.

“Não há nada a negociar”

Um exemplo: a descentralização da contratação colectiva, segundo um dos entrevistados, “foi incluída no acordo porque estava na agenda do Governo e eles sabiam que teriam mais poder para seguir essa agenda se fosse uma obrigação do Estado.” Um sindicalista conta que não houve qualquer diálogo: “Os ministros disseram-nos: 'Sabemos o que vocês pensam, mas nós não estamos aqui para chegar a um compromisso, não há nada a negociar'.”

Tanto com Sócrates como com Passos, o resultado desta concentração de poder nas mãos do Governo, aliada à ambiguidade sobre a autoria das medidas (eram da troika? eram dos ministros?) levou, critica Catherine Moury, a um momento político marcado por “tácticas de despolitização”.

As medidas eram assim, porque tinham de ser, e não - como afinal parece que foram - porque os governos queriam.  Essa táctica foi “usada para erguer imperativos sobre uma escolha estreita de políticas alternativas”.

Mesmo que a acção dos governantes em certas medidas (cortando salários, desregulamentando a legislação laboral) surgisse de uma intuição de que estariam "pressionados para agir da forma que (julgavam) iria tranquilizar os investidores”. Na maioria dos casos reinava, contudo, a convicção. "Muitos ministros disseram-me que foi uma oportunidade", revela Moury.

"É justo que as pessoas tenham essas convicções", afirma a autora, "o que não é justo é retirarem da esfera política essas convicções que têm de ser votadas, discutidas, colocadas no programa eleitoral..."

"A nossa pesquisa testemunha um declínio na transparência e abertura nas tomadas de decisão política que tiveram lugar na última década, ambos dimensões fundamentais da qualidade das democracias estabelecidas. Na nossa opinião, as reformas implementadas durante a crise foram altamente relevantes e deveriam ter estado no centro do debate político", escreveram os autores no blogue da London School of Economics.

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