A penosa conferência de imprensa de Mário Centeno

Essa postura de cadafalso poderá ser-lhe útil, na medida em que serve como um acto de semicontrição que o pode aguentar no Terreiro do Paço.

Aquilo não foi bem uma conferência de imprensa. Foi mais uma sessão de tortura transmitida em directo, com a curiosidade de o torturado ser, ao mesmo tempo, o torturador. Nunca tinha visto nada assim. Mário agredia Centeno, Centeno pontapeava Mário, Mário esmurrava Centeno, Centeno espancava Mário. Foi uma conferência de imprensa onde o ministro das Finanças abria a boca e a gente via, como nos desenhos animados, um Mário angelical a segredar-lhe ao ouvido direito “diz a verdade, diz a verdade, diz a verdade”, e um Centeno diabólico a berrar-lhe ao ouvido esquerdo “esconde, esconde, esconde”. No meio disto, estava um homem perdido, dois hemisférios cerebrais em conflito, a tropeçar a cada três palavras, com uma cadência de discurso semelhante ao de uma professora primária em dia de ditado, constantemente alimentado por uns papelinhos que lhe eram passados pelos colegas de mesa, com as frases que deveria dizer.

Há um lado bonito nisto: o ministro das Finanças é um péssimo mentiroso, e, portanto, esforçou-se ao máximo para se equilibrar na finíssima linha que separa a verdade da mentira – se ele fosse demasiado verdadeiro, iria admitir o que andou a negar durante meses; se fosse demasiado falso, daria o flanco a uma futura divulgação de correspondência comprometedora. É por isso que já vimos pessoas em funerais bastante mais animadas do que Mário Centeno naquela penosa conferência de imprensa, misturando uma espécie de mea culpa (a custo, lá admitiu que possa ter havido um “erro de percepção mútuo” entre ele e António Domingues) com uma espécie de clamor de inocência. Centeno garante que aquilo que foi acordado entre ambas as partes foi a exclusão do Estatuto de Gestor Público e não a dispensa de declarações de património junto do Tribunal Constitucional. É verdade. Só que, como é evidente, ambas as partes pressupunham que a exclusão do Estatuto de Gestor Público tivesse como consequência a dispensa de declarações de património junto do Tribunal Constitucional.

Aliás, toda esta minha argumentação acerca da consistência argumentativa de Mário Centeno é relativamente supérflua perante as imagens da conferência de imprensa – em cima da cara de Centeno estava o peso inteiro da sua consciência. Daí a longa sessão de tortura para a qual o próprio se voluntariou. Contudo, e em última análise, essa postura de cadafalso poderá vir a ser-lhe útil, na medida em que serve como um acto de semicontrição que o pode aguentar no Terreiro do Paço. Substancialmente, Centeno está a mentir, claro, mas formalmente é possível que tenha descoberto uma nesga de terreno (a ausência do tal “papel” que Marcelo exigiu como prova da sua culpabilidade) onde, mantendo-se em bicos dos pés, consiga evitar uma demissão. E se os famosos sms aparecerem? Bom, se aparecerem, também para isso o ministro deixou uma resposta digna de La Palice: “Todas as comunicações privadas que tenho com o dr. António Domingues são privadas.”

Neste jogo do esconde-esconde à vista de todos, há, contudo, dois aspectos relevantes aos quais ninguém pareceu dar o devido valor. Em primeiro lugar, a própria situação da Caixa, que levou meses paralisada devido a um conflito inútil. Em segundo lugar, a maneira como o Governo deixou nas mãos de um escritório de advogados a feitura de uma lei à medida das exigências do seu cliente. Tudo isto é muito mais grave do que o psicodrama Centeno-Domingues. Só que perguntas sobre isso, infelizmente, houve zero.

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