A Europa vista pelo Presidente da República – (1) O lado de fora

Os voluntaristas como Marcelo não podem queixar-se do que está a acontecer, porque são consequência de políticas que apoiaram e apoiam, e que estão a destruir o projecto europeu.

O Presidente da República fez esta semana uma ambígua intervenção sobre o modo como a Europa está, e uma má intervenção sobre os instrumentos políticos ao dispor dos cidadãos para alterar o que ele próprio admite estar mal, estar mesmo muito mal.

Não por acaso fê-lo em mais uma conferência do establishment em que não há contraditório, em que nunca ninguém assegura o pluralismo crítico sobre a Europa. E não me refiro apenas às posições do PCP e do BE, mas a verdade é que nunca houve em Portugal pluralismo na discussão europeia. Quanto muito junta-se uns mais europeístas com outros menos europeístas, mas nunca se dá o pódio a um discurso que diga pura e simplesmente que hoje a União Europeia funciona exactamente ao contrário das intenções dos seus fundadores: torna desiguais as nações, retira de forma muitas vezes capciosa a soberania, faz chantagem com os mais fracos, não é uma “união”, mas um directório de um, funciona sem regras ou para além das regras, e é um risco para a paz europeia e o principal factor de perda e desgaste de democracia em muitas nações europeias. É isto um discurso anti-europeu? Não, é um discurso anti-União Europeia como ela existe hoje. E é um discurso muito mais próximo dos fundadores da Europa que queriam uma União muito diferente, igualitária entre as nações e solidária entre as suas partes.

A intervenção do Presidente é uma intervenção assente no voluntarismo político, do género “a Europa será o que quisermos”, mas na verdade no elenco das coisas que podemos “querer”, só podemos querer exactamente do mesmo que explica porque é que a Europa está como está. É este o aspecto central da ambiguidade da sua intervenção.

Marcelo não esconde os problemas, enumera-os muitas vezes de forma correcta, mas evita discutir as suas causas, em particular quando essas causas estão presentes, direi mais, omnipresentes, naquilo que a Europa hoje é. Não é um problema nem de pessoas, nem de lideranças, mas de políticas e essas políticas estão a destruir a União e a torna-la numa coisa perigosa, instável e perversa. E como se passa em todas as políticas assentes no poder, elas desejam garantir não ser postas em causa e o discurso de Marcelo aceita as baías desse poder. Pode-se dizer que o faz por realismo ou por ter medo do mal maior ou por não ver alternativa? Talvez, mas este tipo de atitudes “realistas” acaba sempre mal. Basta olhar em volta para ver como já está a acabar mal: nunca a Europa esteve tão longe dos cidadãos, os refugiados lembram-na das suas irresponsabilidades, os sistemas políticos desagregam-se, a democracia está a ser sugada por um centro de poder, e o “Brexit”, com a sua “surpresa”, mostra o ascenso, à direita e à esquerda, de forças que contestam esta Europa, nuns casos bem, noutros com o uso do populismo e da xenofobia. Os voluntaristas como Marcelo, não podem queixar-se do que está a acontecer, porque são consequência de políticas que apoiaram e apoiam, e que estão a destruir o projecto europeu. O seu “realismo” actual mantem o statu quo.

Não tenho dúvidas que precisamos de uma Europa que seja, como foi no passado, “uma realidade de paz, progresso e equilíbrio mundial e interno”, mas hoje não se pode dizer que o seja e quando se acrescenta que ela é “insubstituível” está-se a falar de uma atitude atentista que só ajuda a manter tudo o que está mal.

A verdade é que a Europa de hoje, dos últimos cinco anos, está longe de ser “uma realidade de paz, progresso e equilíbrio mundial e interno” , bem pelo contrário. Foi do coração da União Europeia, ou da política externa dos seus principais países, Reino Unido, França, Alemanha, que surgiram alguns dos maiores desastres recentes na Europa e nas áreas que são estratégicas para a Europa. Os EUA têm algum papel, mas diferentemente do que aconteceu no passado, menos militante do que a Europa. Refiro-me ao caso da Ucrânia, cuja divisão é de pura responsabilidade europeia, que cedeu a grupos proto-fascistas, e uso a palavra no sentido literal, abrindo caminho à guerra civil no leste, à intervenção russa, e à anexação da Crimeia. Neste último caso, toda a gente o aceita como consumado, e, embora verbalmente não o digam, o mesmo se passa com a divisão da Ucrânia. Foi bonito derrubar um Presidente corrupto até à medula, coisa que com muitos outros, com quem a União convive bem, parece não ser problema, mas os grupos da Praça Maidan eram a encarnação viva da guerra civil latente entre as “duas Ucrânias” que mataram muita gente durante todo o século XX, mas em particular durante a II Guerra Mundial e a invasão nazi. Havia e há o lado onde há estátuas a Stepan Bandera e o lado onde permaneceram as de Lenine. Nós já nos esquecemos, eles não. Foram muitos mortos.

A esta irresponsabilidade ucraniana, somam-se as da Líbia e da Síria, com intervenções encomendadas a terceiros, enquanto os aviões europeus passavam prudentemente a muitas milhas de altitude. O Estado Islâmico nasceu também do Iraque e da intervenção americana, que acentuou a guerra civil de xiitas e sunitas, mas a sua dimensão territorial estendeu-se até às fronteiras da Turquia. Quem os ajudou a crescer tão rapidamente? Alguns amigos nossos no Médio Oriente, a ambiguidade dos turcos que sempre impediram o apoio que os curdos, os únicos a combater no chão o Estado Islâmico, necessitavam. E não é por acaso que os primeiros aviões turcos que se levantaram depois do golpe de Erdogan foram para atacar alvos do PKK e não o Estado Islâmico.

Os refugiados são, por tudo isto, obra europeia cujas consequências agora queremos esconder em guetos como o de Calais, ou nas deportações para a Turquia pagas a peso de ouro.

Têm estes desastres europeus uma razão? Têm - o abandono da política fundadora de homens como Jean Monnet que conheciam bem demais a Europa para saber que as questões de política externa deviam resultar de uma longo processo de integração sem pressa. Ou seja, aconselhavam a Europa…a não ter política externa enquanto tal. Havia a OTAN e os países com direito de veto no Conselho de Segurança, e que eram os que tinham ainda um resto de forças armadas numa Europa que pagou também parte do seu desenvolvimento deixando aos EUA as despesas de segurança. Esses tinham direito e meios para conduzir uma política externa, até porque eram credíveis militarmente, mas a União em si, não poderia, nem deveria ultrapassar os “pequenos passos”. Numa aceleração irresponsável, em parte por iniciativa francesa, o monstro de pés de barro resolveu experimentar os pés de barro para competir, à de Gaulle e Chirac, com os americanos. Daí resultou uma nova burocracia europeia, o Serviço Externo, uma das coisas que a Europa faz bem e depressa, uma indústria de armamentos à procura de mercados, que usa indevidamente o nome de “defesa” europeia e… os sucessivos desastres.

Voltaremos ao discurso presidencial, agora para a parte de dentro.

Historiador

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