A estabilidade (também) é uma geringonça que balança, mas não cai

No segundo Abril da actual conjuntura governativa e da era Marcelo, já ninguém acredita em crises políticas precoces e eleições antecipadas. Mas os grandes consensos nacionais ainda são uma ilusão longínqua.

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Marcelo e Costa: os protagonistas da actual conjuntura Rui Gaudencio

Há um ano, no seu primeiro discurso do 25 de Abril enquanto Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa afastou o cenário, então ainda muito pedido pela direita, de eleições antecipadas. A solução governativa baptizada de “geringonça” ainda estava em fase de testes e temia-se que pudesse cair antes do Verão. O chefe de Estado foi ao Parlamento pedir para se pôr fim ao clima de campanha eleitoral permanente. Pediu estabilidade e consensos. Pediu realismo ao Governo e humildade à oposição.

Um ano depois, o país parece outro. Visto de longe, é um país em franca recuperação: em vias de sair do Procedimento por Défice Excessivo, com um défice de 2% inimaginável nem pelos optimistas mais irritantes, com um desemprego a descer devagar mas de forma consistente e um crescimento económico ténue, mas também persistente. Um país com mais confiança, mais distendido, socialmente pacificado, notoriamente mais orgulhoso depois de ter ganho o Europeu de futebol e ter visto um português ser eleito secretário-geral das Nações Unidas.

Mas este retrato macro tem poucos pixéis e esconde um sistema político onde a estabilidade é, de facto, uma geringonça que não poucas vezes balança, mas não cai. No Parlamento, onde hoje os partidos e o Presidente hão-de traçar as linhas com que as diferenças se cosem e as proximidades se desfiam, nem sempre os partidos de esquerda apoiaram o Governo. Como nem sempre a direita virou as costas a um Executivo de cuja legitimidade se continua a queixar.

As geometrias variáveis de que se faz esta estabilidade trémula tiveram episódios para todos os gostos e algumas vezes foi o partido de Governo que saiu a perder. O caso mais flagrante foi o da descida da Taxa Social Única, acordada pelo Executivo com os parceiros em sede de concertação social e derrubada no Parlamento por uma coligação negativa que uniu PSD, BE, PCP e PEV (o CDS absteve-se). Mas também na novela das declarações de rendimentos da equipa de administração da Caixa Geral de Depósitos presidida por António Domingues foi infligida uma derrota ao PS, com o Bloco a apoiar a direita quando esta quis tornar clara aquela obrigação declarativa para todos.

Nas grandes causas, aquelas que são o cimento da solução governativa — as reposições de rendimentos e direitos que viabilizam a aprovação pela esquerda dos Orçamentos do Estado —, a coesão das esquerdas tem sido trabalhada como filigrana por entre as “amarras” das imposições de Bruxelas e do Tratado Orçamental. Ver os que antes eram conhecidos como partidos de protesto com discursos em português suave perante um Governo que cumpre os objectivos europeus é, por vezes, motivo de irritação da direita, sobretudo nos debates quinzenais, que às vezes se tornam arenas sangrentas de insultos e excitações.

Atento a tudo isto está sempre um Presidente que se tornou omnipresente e um garante de estabilidade interna e externa. Para fora, ele é o selo de garantia de moderação de um Governo que tantas desconfianças motivou no início. As suas viagens a Estrasburgo com a promessa lusa de europeísmo férreo, a Berlim em vésperas de decisão sobre sanções, a Bruxelas por antecipação da decisão sobre o Procedimento por Défice Excessivo ou ao Reino Unido a seguir à decisão do “Brexit” transmitem uma ilusão de bloco central que, pelo menos, ajuda a aliviar consciências numa Europa onde a direita governa.

Cá dentro, os contactos permanentes que mantém com a sociedade, os partidos e as instituições, a regularidade que imprimiu às reuniões do Conselho de Estado, do Conselho de Segurança e Defesa e às audições com os partidos políticos, assim como as causas próprias que alimenta, como o fim dos sem-abrigo, permitem-lhe, não só alimentar uma popularidade inédita, como sobretudo antecipar ou dissipar crises. Ainda que, por vezes, corra o risco de parecer nelas participar, como no caso da CGD, dos colégios com contratos de associação ou do Teatro da Cornucópia.

Mas os consensos, senhor Presidente, os “consensos sectoriais de regime” que pediu há um ano na Saúde, na Justiça e na Segurança Social, esses ainda se mostram como uma realidade longínqua. Na Justiça, o pacto de que falou na abertura do ano judicial tem motivado umas reuniões promovidas pelo ministério, mas ainda sem resultados visíveis. Na Saúde, a lei plurianual para investimento que defendeu num encontro das ordens profissionais do sector ainda não teve consequência. E na Segurança Social, a negociação em curso para as reformas antecipadas das carreiras contributivas longas está longe de corresponder a um acordo de regime. O que mais se pode aproximar deste nome será, talvez, a descentralização. Mas ainda não está garantido.

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