A derradeira tentativa para destruir a Caixa

A gritaria centra-se no ordenado do novo Presidente, numa festa da demagogia própria de um país que continua a não gostar de ver uma camisa lavada a um pobre.

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1. Foram sete cães a um osso, como diz o povo e sem ofensa. O osso é a CGD, que se transformou pelas piores razões numa algazarra política e mediática que não só impede que se pense a sério sobre o assunto como ameaça deitar abaixo uma solução penosamente negociada em Bruxelas e que garantia, pela primeira vez, uma gestão estritamente profissional do banco, tirando-a do eterno abraço do Bloco Central. A gritaria centra-se no ordenado do novo Presidente, numa festa da demagogia própria de um país que continua a não gostar de ver uma camisa lavada a um pobre. Seguiu-se a defesa apaixonada do Estado de Direito, que ficaria lesado caso Domingues não entregasse no TC a sua declaração de rendimentos. O povo gosta. As consequências, essas, não são para aqui chamadas. Pelo contrário, a gritaria pode ajudar a esquecer coisas passadas e bastante incómodas para os partidos do anterior Governo.

2. Passos Coelho é o primeiro responsável pelo que se está a passar. Deixou, com a cumplicidade da troika europeia, que o sistema bancário português mergulhasse numa crise profunda, alegadamente para cumprir a regra nº 1 do breviário neoliberal segundo a qual o Estado não tem nada a ver com o que se passa na banca. Em caso de falência, o problema é dela. Consegue dizer tranquilamente que o actual Governo está a dar cabo do sistema financeiro. A sua ideia sobre o banco público é que, provavelmente, nem sequer devia existir. E, em caso de existir, deveria ser “salvo” por capitais privados, para influenciar o accionista principal. Com que vantagem? Passos não actualizou o breviário, depois da queda do Lehman Brothers, em Setembro de 2008. A administração americana também disse que o assunto não era com ela e foi elogiada por deixar cair um dos maiores bancos de investimento do mundo. Só se pôde vangloriar uma semana. O resto da história, sabemo-la demasiado bem. Sabemos também que o sistema financeiro europeu está muito longe de ter os seus problemas resolvidos. Apenas a Inglaterra e os EUA já fizeram o que era preciso, com muito dinheiro público e regras novas (no caso americano).

3. O Governo de Costa herdou uma situação próxima do colapso nos bancos. Era preciso salvar a Caixa com dinheiro público, contra as regras de Bruxelas sobre as ajudas de Estado. A argumentação foi difícil mas, coisa rara, teve ganho de causa. Pela primeira vez, a administração da instituição passou a ser inteiramente profissional. Acabaram as “Cardonas” (o CDS também teve direito à sua fatia do bolo) ou os “Varas”, fruto de uma regra não escrita segundo a qual a Caixa devia ser gerida por uma administração negociada entre PS e PSD: de preferência, um presidente do PSD quando o PS estava no Governo e vice-versa. Isto não quer dizer que alguns dos gestores que passaram pelo conselho de administração não fossem competentes. Houve-os, de facto. Mas a mácula partidária sempre pairou sobre as suas decisões. Da mesma maneira que houve sempre um debate político sobre se o Estado devia manter um banco público. São legítimas as diferentes posições. Mas a prudência foi sempre aconselhando a manutenção da Caixa nas mãos do Estado, e hoje por maioria de razão. A crise financeira acelerou o processo de internacionalização da banca privada, demasiado pequena e dispersa para sobreviver, passando a sua propriedade para capitais angolanos, chineses e espanhóis. Mas nada disso interessa. Interessa que a questão de fundo seja diluída em várias frentes de combate. E é exactamente o que está a acontecer. Depois do ordenado são as declarações de rendimentos dos gestores que devem ser entregues no Constitucional. Usam-se grandes palavras como o Estado de Direito e a democracia, embora haja pareceres jurídicos distintos. E, à falta de melhor, ainda há ao seu alcance uma qualquer comissão parlamentar de inquérito, em nome da transparência para pôr tudo em pratos limpos. Para retirar credibilidade à Caixa parece que vale tudo.

4. Já quanto ao vencimento do presidente da Caixa, PPC esqueceu o breviário e juntou-se a Catarina Martins. Tem a legitimidade de quem é contra os bancos públicos e, portanto, os grandes ordenados devem ficar apenas para os privados. Assunção Cristas conseguiu, mesmo assim, ultrapassá-lo em matéria de demagogia, quando disse que um país com pensões tão baixas não podia permitir-se um salário desta natureza. Esqueceu-se do que o Governo a que pertenceu fez às pensões pequenas e remediadas, deixando um lastro de injustiça e de impotência que só mesmo quem o viveu pode testemunhar. Quanto ao polémico salário, com sorte António Domingues leva menos de 15 mil euros para casa. Seria preciso alguém que tivesse feito um voto de pobreza ou, então, ser absolutamente incompetente, para aceitar um ordenado inferior ao do Presidente. Também seria de desconfiar que o novo presidente chegasse à Caixa sem qualquer património, depois de uma carreira de 25 anos no BPI.

5. É verdade que somos um país profundamente desigual em ternos europeus. Ainda não conseguimos vencer a armadilha da pobreza. Mantemos como herança um défice de educação que não existe na maioria dos nossos parceiros mais ricos. Temos um tecido empresarial onde predominam as pequenas empresas sem qualquer capacidade de gestão e muitas médias que sofrem do mesmo mal. Temos um salário mínimo que é uma vergonha, mas que terá de ser combatido a sério pelo aumento da produtividade do trabalho (mais tecnologia, mais educação, melhor gestão). Ficámos ainda mais pobres com esta crise que assentou o seu ajustamento na redução dos rendimentos do trabalho e das pensões. A decência é necessária mas a demagogia não. Não é o salário do presidente da Caixa que aumenta as desigualdades.

6. E já que estamos à volta da Caixa, vale a pena recordar qual foi a reacção de muita gente quando o BCE resolveu vetar as escolhas de alguns dos administradores não executivos, que incluíam nomes tão respeitáveis e competentes como Leonor Beleza. As dúvidas levantadas em Frankfurt sobre a sua capacidade de gestão ou a recomendação de cursos acelerados no INSEAD é, pura e simplesmente, inadmissível. Mas deu imenso gozo a muita gente, sempre entusiasmada com a última chicotada que levamos da Europa, a confirmar como não valemos nada.

A irresponsabilidade é de tal ordem que ainda corremos o risco de ver a solução para a Caixa soçobrar, dando mais uma machadada na credibilidade ainda muito frágil do sistema financeiro. Vê-se e não se acredita. Ou então está aqui uma das explicações para nossa aparente incapacidade de criar uma sociedade mais ricas e mais igual. 

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