A democracia só merece um dia qualquer?

Para a democracia, ser cidadão e eleitor ainda é um bocadinho mais importante do que ser adepto de um clube.

De cada vez que joga o meu clube de futebol, recebo uma mensagem que me diz: “Hoje não é um dia qualquer!” Como o meu clube joga muitas vezes, há muitos dias que não são “um dia qualquer”. A mensagem está bem achada: de cada vez que o Benfica joga é sempre um dia especial — para o Benfica e para os benfiquistas. O mesmo não vale, é claro, para os adeptos dos outros clubes (e para os adeptos de clube nenhum).

Como é evidente, para o futebol um dia de jogo nunca pode ser um dia qualquer. E para a democracia? Deve a democracia tratar-se como se fosse indiferente a si mesma? Ou deve a democracia ter valores e, por isso mesmo, preferências? No primeiro caso, a democracia deve tratar os seus dias como se fossem “dias quaisquer”. No segundo caso, a democracia deve tratar os seus dias como dias importantes.

Claro que ao referir-me aos “dias da democracia” não estou a falar do Dia Mundial da Democracia — que, por coincidência, se comemora hoje —, mas dos dias que são mais importantes para a democracia: os dias das eleições. E claro que ao fazê-lo me estou a referir à notícia que ontem foi tema forte na imprensa e nas redes sociais, segundo a qual o Governo pensa propor que em dias de eleições se não possam realizar jogos de futebol e outros eventos desportivos de massas.

A ideia de não haver futebol em dia de eleições foi logo recebida segundo o modo dominante hoje em dia, aquele a que os britânicos chamam “contrarianismo” e que consiste em procurar o mais rapidamente possível o argumentário mais forte possível contra os pressupostos do tema do dia. As ferramentas do “contrarianismo” são as mesmas que o economista Albert Hirschamn um dia identificou para o reacionarismo: futilidade, perversidade e risco. Concretizemos. Futilidade: impedir a realização de jogos de futebol em dias de eleições é fútil, porque nada vai fazer para mudar o facto de as pessoas votarem pouco. Perversidade: se começamos a proibir jogos de futebol para as pessoas irem votar, onde é que vamos parar? Iremos proibir as missas, os eventos culturais e as idas à praia? Risco: se as pessoas não querem ir votar, deixem-nas; medidas como esta são um atentado à liberdade individual.

Deixem-me não ser claro (leram bem): eu não sei se sou a favor desta medida. Também não sei se sou contra. Quem me conhece bem sabe que eu não sou adepto do “contrarianismo”, mas sim do “por-outro-ladismo” (a partir de “por outro lado”), que é uma palavra que acabei de inventar e que evoca a vontade de dar um pouco mais de tempo e de reflexão aos méritos de cada ideia que entra no espaço público.

Ora, o que o “por-outro-ladismo” me diz é que escondida por detrás da reação negativa geral está a ideia de que a democracia é apenas um recipiente vazio, à espera que cada um a utilize ou menospreze conforme convier. Segundo essa maneira de ver as coisas, a democracia não pode ter preferências. Nem sequer uma preferência por si mesma. Mas esta maneira de ver as coisas já tem revelado demasiadas vezes ser perigosa. Se é verdade que para a democracia não pode haver preferências entre votar A ou votar B, é também verdade que para a democracia tem de haver uma preferência clara por votar (e contra não votar). Querer que para a democracia seja tão equivalente votar como não votar seria como exigir que para o Benfica fosse tão igual os benquistas irem ver os jogos do clube como deixarem de o fazer.

Com uma agravante: felizmente, só é adepto de um clube quem quer. Mas cidadãos somos todos. E por isso a comunidade politicamente organizada de todos os cidadãos, liderada pelos seus representantes eleitos, tem não só o direito, mas até o dever, de proclamar que o dia das eleições não é “um dia qualquer”. Talvez a melhor maneira de o fazer não seja proibindo jogos de futebol, admito. Mas sei que proclamar o absurdo da ideia como forma de rejeitar o debate não é certamente a melhor maneira de nós reagirmos. Para a democracia, ser cidadão e eleitor ainda é um bocadinho mais importante do que ser adepto de um clube.

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