Verão na biblioteca

1. Há coisas que acontecem todos os Verões no Rio de Janeiro, como caírem casas, estradas, morros. Ainda não tinha caído uma passarela de 100 toneladas numa via rápida, mas aconteceu na última terça-feira quando um camião chocou com ela, vamos em cinco mortos, vale que não estava a chover. Aliás, não me lembro de tantos dias de Verão no Rio sem chuva, continua a sensação térmica de 50 graus. Outra coisa que acontece todos os Verões no Rio é esgotar o ar condicionado quando a sensação térmica chega a 50 graus. Literalmente indisponível em toda a cidade, nem um aparelho. Enquanto morei na mata do Cosme Velho, onde a temperatura é sempre mais baixa, não pensei no assunto. Este Verão moro num quarto onde o sol começa a bater às seis da manhã. Neste momento devem estar uns 50 graus. Foi num momento assim que resolvi tentar a minha sorte numa biblioteca carioca.

2. Comecei pelo meu bairro, Laranjeiras. Havia um braço da Biblioteca Nacional numa transversal não muito longe de casa. Liguei para confirmar que estavam abertos e tinham ar condicionado. Todo o país seguiu o drama dos dias em que a Biblioteca Nacional, a própria, a sede, sempre apresentada como a maior da América Latina, com nove milhões de livros, mapas e manuscritos, esteve sem ar condicionado. Isto aconteceu no Verão passado. Os funcionários abriram janelas, parece que entravam bichos, mas não leitores, li nos jornais. Então, num pequeno braço em Laranjeiras seria bem possível que não houvesse ar condicionado, daí a pergunta. Mas não, a funcionária garantiu-me que havia. Não havia era sala de leitura, estava em reforma, mas havia uma salinha alternativa. Desci a Rua das Laranjeiras com o sol a pino, voltei à esquerda na Pereira da Silva, simpática transversal daquelas ainda com sobrados, como os brasileiros chamam às velhas casas de dois andares. A biblioteca ficava num sobrado assim. Entrada lateral, recepção com um retrato de Clarice Lispector, uma calorosa funcionária que era a mesma que atendera o telefone. Saiu comigo do edifício para me levar à tal salinha alternativa, contornámos as traseiras, entrámos pela cave: uma salinha com luz de talho e pequenas aberturas junto ao tecto. De facto não estavam 50 graus, mas era como ficar a ler na arrecadação. Agradeci, alegando que tinha um problema de saúde, precisava de luz natural.

3. Como já estava perto do Largo do Machado, caminhei até ao metro, três estações até à Cinelândia. É a praça nobre do Rio de Janeiro, em torno da qual se alinham o Theatro Municipal, o Museu de Belas-Artes, o Centro Cultural da Justiça Federal, a Biblioteca Nacional. Em três anos e meio de Rio de Janeiro, eu nunca pusera os pés na Biblioteca Nacional, chegara a hora. Subi a escadaria: vetustos mármores, sombra, fresco. Não sei em que fase estão os 70 milhões de reais em curso para reformas, mas confirma-se que o ar condicionado funciona até demais, naquele já quase Inverno que nos obriga a levar uma manta para o cinema. Preenchi uma ficha e deram-me um cartão para eu entregar aos seguranças, que me entregaram uma chave para o cacifo onde eu guardaria todas as minhas coisas. Expliquei que todas não poderia ser, precisava de um livro que estava na mala. Responderam-me que de qualquer forma primeiro teria de deixar tudo dentro do cacifo, e depois voltar à recepção onde preencheria um pedido de autorização indicando o nome do livro que eu queria fazer penetrar na biblioteca. Quando voltei com o papel na mão, para passar a roleta de metal, a funcionária disse que aquele livro era muito conhecido, devia existir dentro da biblioteca, portanto talvez não valesse a pena eu entregar o pedido. Expliquei que se tratava do meu exemplar, anotado, portanto diferente de qualquer outro. Entretanto, já eram 11 da manhã, eu saíra de casa às 9h.
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4. Com o formulário na mão, abri a porta da sala de leitura da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, a maior da América Latina, etc, etc: estava no século XIX. Dezenas de mesinhas de madeira individuais, como pequenas secretárias oitocentistas. Nada de cabos ou de fichas para computadores. Soalho sem modernidades eléctricas. Do lado esquerdo, junto às janelas, sim, algumas mesas vazias com computadores da própria biblioteca. Mas, no resto da sala, um punhado de leitores oitocentistas sentados em mesinhas, um livro aberto nas mãos. Atravessei como num templo até ao fundo, onde ficava o gabinete das autorizações. Uma senhora sorriu ao ver o título que eu queria fazer penetrar: ah, é para cotejar. E carimbou. Voltei a atravessar o templo para levar o papel aos seguranças, para abrir o cacifo, para tirar o livro.

5. Com o livro na mão, voltei à sala de leitura. Eis senão quando, ao reatravessar o templo até uma mesinha próxima da janela, um funcionário me alcançou. Não era possível eu sentar-me sem fazer uma pesquisa e pedir um livro, explicou. Respondi que já faria uma pesquisa, mas para já precisava de me sentar a ver o meu livro. Não, eu não podia sentar-me, primeiro tinha de fazer uma pesquisa. O funcionário era um funcionário, sussurrávamos, como deve ser. A luz entrava por trás da cabeça dele, e tudo o que eu via era meia dúzia de nucas curvadas sobre mesinhas. Aquilo era a sala de leitura da maior biblioteca da América Latina. Dava para mudar a canção do Caetano: não, o lugar mais frio do Rio não é o quarto dele. Olhei para a cara do funcionário, na rotina dele seria quase um motim. Quer saber de uma coisa? Não vou sentar mesmo, saio já.

6. A segurança cotejou o nome do meu livro infiltrado com o formulário de autorização e ficou com o formulário. Abri o cacifo, recuperei a mala. Uma funcionária quis saber o que acontecera, fez ahhh, sugeriu, mas se você quer ler o seu livro pode ir aqui do lado, no Centro Cultural de Justiça Federal.

7. Ainda bem que mesmo ao lado da Biblioteca Nacional existe um lugar onde uma pessoa pode ler o seu livro.

8. Atravessei a rua, perguntei ao segurança do grandioso Centro Cultural da Justiça Federal qual era a porta para a biblioteca. Ele respondeu que infelizmente estava fechada para reforma. E a sala de leitura, anunciada em painéis cá fora? Também estava fechada para reforma, infelizmente. Uma coisa muito carioca é este cordial infelizmente. Entretanto já era quase hora de almoço, e eu transpirava tanto como nos 50 graus do meu quarto, que é o lugar mais quente do Rio.

9. Atravessei a Cinelândia a pensar que agora sabia porque é que em três anos e meio nunca entrara na Biblioteca Nacional, nem conhecia ninguém, não-pesquisador, que fosse para lá ler ou trabalhar. Nos anos de mais violência no Rio, os meus amigos habituaram-se a não sair de casa com computadores. No Rio, não há hábito de trabalhar em cafés, além de que os cafés têm música. Na versão sala despida, zero acolhedora, há a biblioteca do Centro Cultural do Banco do Brasil. Pelo menos, ninguém nos chateia.

10. O Brasil tem 13 milhões de analfabetos adultos, dados da UNESCO agora. É, pois, a sexta maior economia do mundo e o oitavo maior número de analfabetos do mundo. Num país assim, talvez, quem sabe, é só uma ideia, a Biblioteca Nacional pudesse ser um lugar onde naturalmente se lesse. Talvez pudesse até chamar gente em vez de criar todos os obstáculos até a gente desistir. Imagino um garoto da favela a entrar na sala da leitura para ler: não imagino. E lembro-me de um homem que se chamava Joaquim Mestre, pai da Marta Mestre, minha camarada de Rio de Janeiro, a mais alentejana curadora de museu do Rio de Janeiro. Lembro-me da Biblioteca de Beja que Joaquim Mestre dirigia, cheia de gente, às tantas da noite.


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