Um manifesto exemplar

Escrevo a 16 de Março, depois de uma semana em que o denominado “Manifesto dos 70” foi o acontecimento mais marcante na nossa desinteressante política.

Os factos são conhecidos: um grupo de cidadãos com diferentes enquadramentos ideológicos e formação diversa publicou um texto a propor a “reestruturação responsável da dívida”. Lembremos que no final do ano passado o rácio da dívida pública rondava os 130% do PIB.

No Manifesto, o grupo dos 70 defende a manutenção dos esforços de “boas práticas de rigor orçamental”, mas adverte para o risco de degradação dos serviços e prestações fornecidos pelo Estado, se não houver uma reestruturação da dívida “no espaço institucional europeu”.

Num país em que a democracia honrasse o nome desse sistema, esta proposta seria acolhida com interesse e desencadearia, de imediato, um interessante debate. Nesse confronto de ideias, o Governo e a oposição aproveitariam a situação para expor com serenidade as suas ideias, estimulando a partilha de opiniões e o aparecimento de novas propostas.

Nada disto se passou. O Governo reagiu com ferocidade: designou os signatários por “gente” e acusou-os de “agenda política” e cepticismo. Vários comentadores da área governamental apressaram-se a seguir a mesma linha, acentuando o carácter inoportuno do Manifesto.

Para mim, a iniciativa do Manifesto dos 70 é exemplar. Mostrou a todos nós algo que falta em Portugal: um elevado sentido patriótico. Os seus autores têm a leitura de que é preciso mudar alguma coisa, para evitar que o nosso país possa vir a sofrer muitos anos de empobrecimento (de notar que o Presidente da República tinha previsto, recentemente, que a dívida só será sustentável com décadas de austeridade). Os signatários revelaram também algo que falta na sociedade portuguesa: a participação cívica, característica das sociedades evoluídas, em que os cidadãos se constituem em vários grupos para alertar o poder político dos problemas mais urgentes, propõem soluções e não hesitam em criticar, sem subterfúgios, quando os governantes tomam posições erradas.

Ao reagir com “raiva”, como escreveu Pacheco Pereira, ou com “irritação”, como titulou o Expresso, o Governo mostrou, mais uma vez, a sua ideia de democracia: quem não apoia está sempre errado ou fora de tempo, ou pelo menos não estará bem informado.

Esta concepção do exercício do poder revela-se mais dura a cada dia que passa, assumindo muitas vezes a forma de intoxicação da opinião pública. Quem não é por nós não é por Portugal, não existe alternativa, fomos nós que corrigimos o rumo do país que caminhava para a bancarrota, quem nos deixou nesse estado nunca pode criticar, tudo o que propõem já foi feito, só os cépticos e os radicais estão contra o Governo, eis alguns exemplos dessa imposição persistente de opinião única, por parte do Governo e dos seus apoiantes com mais fácil acesso à comunicação social.

A verdade é que as pessoas não vivem melhor e, mais grave do que isso, os seus descendentes também não conhecerão melhores dias. Os autores do Manifesto, com a autoridade de quem já há muito pensa estes problemas, quiseram fazer pensar e tentar corrigir o rumo. Merecem o nosso apoio inequívoco e o nosso respeito duradouro. Compete a todos nós não deixar esquecer as suas propostas. Por Portugal.     

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