Tudo a poder de lágrimas e de ais

Quantas marchas haverá ainda que cumprir para que a igualdade de géneros no plano discursivo encontre paralelo no dia-a-dia de tantas mulheres.

“O meu avô foi apaixonado pela mulher toda a vida. Deve ser tão bom, tão bom. Um homem sozinho não pode ser feliz”, contava na passada semana António Lobo Antunes, na entrevista que deu ao Expresso. E quando a jornalista Cristina Margato lhe pergunta se uma mulher pode ser feliz sozinha, o escritor responde: “Pode. São muito mais fortes do que os homens. Aguentam melhor a solidão. São mais corajosas diante da doença. Vi isso quando estava a fazer quimioterapia”.

E eu, que desconfio sempre que nestas coisas a educação é chave explicativa mais eficaz do que qualquer determinismo genético, fico a matutar na coisa. Nos meses que passei num hospital, eram as mulheres que davam colo aos seus filhos, enquanto havia crianças a morrer ao lado. Quando comentava a omnipresença feminina com a enfermeira-chefe do serviço (e, a propósito, na neonatologia não havia um único enfermeiro homem para amostra), a resposta foi: “Em dias como este, os homens não aguentam. Vão-se embora”.

E lembro-me a propósito as palavras do realizador João Canijo enquanto explicava, a propósito do seu filme que há de estrear daqui a poucos meses, por que é que prefere filmar com mulheres. “Dão mais trabalho, mas são muito mais interessantes. São mais disponíveis, entregam-se mais e têm mais disposição ao sacrifício e ao esforço. Eles são muito mais preguiçosos”.

Quantos séculos passados desde que o Marquês de Sade diminuía as mulheres a mero objecto de prazer e ordem. “Estremecei, adivinhai, obedecei, antecipai e (…) talvez não sejais completamente infelizes”, vaticinava no seu 120 Dias de Sodoma, escrito na mesma França que, daí a alguns anos, inventaria a roda para permitir que as mães solteiras (ou adúlteras) lá despejassem os filhos e assim escapassem ao degredo social, ao mesmo tempo que se evitava o infanticídio, o aborto ou o abandono dos seus filhos bastardos, enquanto os homens se passeavam incólumes durante todo o processo.

E, muito mais recentemente, em 2001, recordo-me dos vultos das 17 mulheres julgadas na Maia, pelo crime de aborto, e que calavam histórias de abandono e de uma pobreza tal que algumas, à falta de dinheiro, haviam pago a interrupção da gravidez com peças de ouro. E da pergunta que o médico e ex-secretário de Estado da Saúde, Albino Aroso, lançava então para o meio da confusão mediática onde se perdeu sem resposta: “Então e os pais, não se responsabilizam?”.

Quando tento encontrar conexões nestes fragmentos soltos, a única coisa que me ocorre é que hão-de ter sido estes séculos todos de secundarização do papel das mulheres que as densificaram e tornaram mais resilientes. E, numa altura em que a roda não existe, o aborto é possível e a PMA também, nomeadamente para mulheres solteiras, e já ninguém se atreve a confundir mulher com domesticidade, pergunto-me quantas marchas haverá ainda que cumprir para que a igualdade de géneros no plano discursivo encontre paralelo no dia-a-dia de tantas mulheres.

É verdade que se mostram mais fortes do que os homens, como diz Lobo Antunes, e mais dispostas ao sacrifício e ao esforço, como corrobora Canijo, mas, como acrescentava na mesma entrevista Lobo Antunes, parafraseando uma frase de uma doente, “é tudo a poder de lágrimas e ais”. 

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