Sobre procedimentos de estomatologia aplicados à História

De todas as coisas que se fazem aos dentes e que também se podem fazer à História, o branqueamento é a mais lamentável. A desvitalização da História é vil, a aplicação de flúor na História é infame, a destartarização da História é racista para alguns povos do Leste europeu, mas todas empalidecem face ao branqueamento da História.

Não contem comigo para branquear. Mesmo que a Assembleia da República permita a exposição dos bustos sem o acompanhamento de um funcionário que, de cada vez que alguém se aproxime, diga: “Este é o pérfido Américo Thomaz” e cuspa para o chão, eu tenciono fazer a minha parte para enegrecer a História.

Para já, recortei todos os familiares que viveram durante a ditadura das fotos cá de casa. Não estavam no poder, não eram apoiantes, mas habitavam Portugal. Para verem a maldade desta gente, ilustro com uma história: certa vez, em 1971, os meus pais foram a uma festa. Exacto: divertiram-se em pleno Estado Novo. Se calhar, até dançaram. Chocante.

O próximo passo é deixar de falar às pessoas nascidas antes de 74 que não tenham combatido o fascismo — quer lutando pelo estabelecimento de uma democracia quer sendo do PCP. O meu irmão nasceu no fim de 73, mas também teve o desplante de ser feliz na 2.ª República. Até aos seis meses dormia e comia como se não se passasse nada. Não pactuo com este tipo de conivência. (Em rigor, o ostracismo devia estender-se a pessoas nascidas até Janeiro de 75, pois foram concebidas ainda na longa noite do fascismo, mas enfim, não me é prático deixar de falar à minha mulher.)

Mais: vou queimar todos os livros que não foram escritos em democracia. “Serão com Lusíadas à lareira” vai ter outro significado. Vou também deixar de comemorar a Taça das Taças conquistada pelo Sporting em 1964. Pretendo, além disso, mudar-me para o Parque das Nações. Assim tenho a certeza de que o meu dia-a-dia é todo ele passado em construções do pós-25 de Abril.

Agora, não se pode, como alguns comentadores fizeram a propósito deste tema, trazer à liça a entrevista em que a deputada Rita Rato, responsável pelo pedido de retirada dos bustos, diz não ter certezas sobre o gulag.

Eu, se fosse deputado do PCP, também não admitia a existência de atrocidades na União Soviética. Era o admites! Rita Rato pugna pela fundação de um regime comunista. Quando isso acontecer, vai haver ajustes de contas com desalinhados. “Ai, com que então havia campos de trabalho na Sibéria para onde mandávamos os dissidentes morrer?”, dirá um controleiro a quem tresmalhou. “Só por causa dessa dissidência vais ser mandada para um campo de trabalho na Sibéria, até morrer.” Rita Rato fez bem. Nunca se sabe o dia de amanhã que canta.

Os comunistas não brincam. A Rita Rato sabe disso. Como qualquer um de nós, aliás. Basta ver que a maior parte do povo português esteve sossegadinho nos 48 anos de Estado Novo, mas protestou mal surgiu a hipótese de os comunistas ocuparem o poder. O povo português não é assim tão parvo.

O primeiro livro de História jamais escrito começa assim: “Aqui se apresentam os resultados das pesquisas realizadas por Heródoto de Halicarnasso. O objectivo é evitar que os vestígios dos acontecimentos humanos sejam apagados pelo tempo.” Heródoto esqueceu-se de acrescentar “e pelos deputados da extrema-esquerda portuguesa”.     

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