Rolezinho com Arjan

1. Conheci Arjan a dançar. Salvo erro, ele era o único negro da festa. Em festa de Zona Sul do Rio de Janeiro, negro é músico ou excepção. Esta acontecia nas imediações de um quilombo, antigo refúgio de escravos hoje protegido por lei, com direito de residência para os descendentes. O Rio mata-e-morro tem clareiras assim. E ali estávamos, numa encosta sobre a Lagoa, onde os negros de há 150 anos se escondiam e hoje os seus netos não se misturam com os brancos. Da festa nem se viam as casas.

2. Passaram Verões, fui avistando Arjan aqui e ali, geralmente em Santa Teresa, junto ao Bar do Mineiro, à porta do qual cheguei a fumar o meu cigarro nocturno sem saber que as Graças no muro em frente tinham sido pintadas por ele. Qualquer coisa das banhistas de Renoir mas sonhada na Bahia, não digo que seja o que foi pintado, digo que era o que eu via.

3. Em 2013, ao visitar o Travessias II (projecto de arte contemporânea numa favela da Maré), dei com as pinturas dele: Arjan Martins. Dez artistas ao todo, alguns realmente populares, como Vik Moniz, outros realmente pop, como Ernesto Neto, um deles realmente formado na favela, Ratão Diniz. Na altura não fiz estas contas, mas Arjan continuava a ser o único negro. Nem mulato nem mestiço, negro mesmo. Não é músico, é excepção.

4. Agora no começo do ano vi notícias de Arjan expondo em Santa Teresa. Então fui lá esta segunda-feira, feriado no Rio, dia do padroeiro, sol de 40 graus. Caminhei do Largo do Guimarães para o Bar do Mineiro e ele veio vindo do atelier, que também é casa, ao dobrar da esquina (por isso sempre o via ali). Descemos juntos à galeria, uma espécie de estufa em vidro no pátio de uma pousada. Pequena galeria, amostra do que Arjan está a preparar para o Museu de Arte Moderna, ainda em 2014, com curadoria de Paulo Sérgio Duarte, um pilar da crítica carioca. Será a primeira grande exposição de Arjan. Aos 53 anos não é cedo, mas também não é tarde para quem começou tarde. Quem passou metade da vida nos subúrbios do Rio de Janeiro não costuma chegar cedo ao Museu de Arte Moderna, aliás, não costuma chegar, ponto. Assim de repente, não me lembro de outro artista negro neste circuito. Arjan também não.

5. Dados do último Censo: mais de 50% da população brasileira não é branca.

 

6. Algumas das telas na galeria não são telas.

— Eram embalagens de caixas electrónicos — diz Arjan.

Ou seja, caixas multibanco. Achou-as na rua, gostou da madeira, manteve carimbos, etiquetas, fechos. Tornou-as suporte de corpos sem rosto e rostos só caveira, fantasmas da história, do tráfico de escravos. Depois, nas telas, há figuras inspiradas em fotografias achadas na Praça XV, a feira da ladra carioca, e figuras que contrariam as pinturas canónicas de Jean-Baptiste Debret, o francês que retratou a sociedade carioca da primeira metade do século XIX. Uma mulher negra de pernas inacabadas, como se o autor tivesse abandonado a obra, tem esta inscrição magrittiana: “Isto não é um Debret.”

7. Saímos da galeria por uma daquelas ruas de Santa Teresa cheias de casarões decaídos, portadas de madeira, floreiras de pedra. Num dos muros, há outra versão das banhistas de Arjan. Ao fundo, meio mundo a sambar junto ao Bar do Gomes, boteco com garrafas do chão ao tecto. Foi o bar do meu primeiro carnaval de rua, nunca o vi sem ser assim, a transbordar para o samba. Tanto que para falar nos sentamos na esplanada rival, quase vazia. Feriadão de carioca não é para falar sério, não.

8. Arjan nasceu em Mesquita, Baixada Fluminense, o fundo de toda a estatística. O pai morreu tinha ele um ano, e talvez tivesse outra família. A mãe pôs os quatro filhos em internatos públicos. Os militares tinham acabado de dar o golpe. Eram os anos 60, castigo de palmatória, de ajoelhar no milho. Alguns internados saltavam o muro, fugiam no tecto dos comboios. Chamavam-lhes “surfistas”, em vez de água, corrente eléctrica. Aos 14 anos, já cá fora, Arjan trabalhava nas obras. Segue-se office boy, vendedor, barman no bar Suburban Dreams de um inglês que navegara até ao Rio “com um sextante e a mulher grávida”, depois de assistir à explosão do punk em Londres, onde era vizinho aliás de Vivianne Westwoood. Toda uma escola para Arjan. Como a praia:

— Praia, pelo menos, a gente tem.

Ipanema, Posto 9, anos 80. Aparecia Cássia Eller, musa, lésbica, rocker. Aparecia Jards Macalé, muso, rocker, até hoje. Caramba, digo, sou devota do Jards Macalé. E Arjan, rindo:

— O Macalé passava por mim na areia, eu lá estendido, e ele [engrossa a voz]: “Quando vamos ver sua grande obra?”

9. Mas foi no Suburban Dreams que Arjan conheceu a amiga de um professor do Parque Lage, ou seja, da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, onde gerações de cariocas se formaram. Ela levou-o para uma festa em casa desse professor, Charles Watson, estava lá meio mundo da arte dos anos 80, nomes como Luiz Zerbini ou Beatriz Milhazes. Daí, Arjan saltou para as aulas com a ajuda de uma bolsa. Não que sempre chegasse para comer.

— Preto, magro, sem dinheiro, não foi fácil. Eu lia saboreando o perfume do café da cantina. Passava longas horas com fome.

Catava papel na rua para usar em desenho. Não se lembra de mais negros lá.

— Não existia não-branco no Parque Lage.

10. Tinha 30 anos, já. E desde então, mais de 20 anos depois, isso de ser negro em meio de brancos não mudou muito.
— Na Zona Sul, os negros são os empregados. Você não vê o negro chegar, estacionar o carro e subir para o escritório.

O preconceito tem três nuances:

— Dissimulação, escancaração e racismo assumido.
Sintoma de tudo isso é o rolezinho, palavra que domina este começo de ano e remata a nossa conversa.

11. Se dar um rolê, na gíria, é dar uma volta, rolezinho é o rolê no seu estado de graça, obra-prima do diminuitivo brasileiro. Moleques do subúrbio dão um rolezinho na Zona Sul, ou seja, garotos pobres, mestiços, negros, dão uma volta entre os brancos ricos. Sempre deram, e sempre geraram pânico, ainda que dissimulado, entre brancos ricos, ainda que não sejam ricos, porque ser branco no Brasil já é ser rico. Mas neste começo de ano vai-ter-Copa-não-vai-ter-Copa, que se promete mais luta de classes que nunca, rolezinho virou assunto de tribunal, com juízes julgando se os moleques podem ou não dar rolezinho no shopping, porque shopping é propriedade privada. Então a galera #nãovaitercopa decidiu convocar um rolezinho no shopping Leblon em apoio aos rolezinhos do subúrbio, onde, de resto, as opções de lazer são sair de lá. A batalha ia acontecer ontem, domingo, meio do feriadão. Conto a Arjan que fui lá, e, vitória do rolezinho, o shopping Leblon entaipara as portas, fechado com anúncio em português e inglês, explicando aos queridos clientes que para garantir a segurança, e tal e tal. Fiz a rua até à praia para festejar a não-facturação do domingo. Os consumidores podem sempre dizer que o rolezinho falhou, mas o que falhou mesmo foi o consumo no seu melhor dia. Sentado em Santa Teresa, Arjan, meia vida além do subúrbio, resume isto assim:

— O nome já é agradável, rolezinho. E o que eles reivindicam é ir e vir. Rolezinho é o ir e vir. Está na Constituição, não?

 

Crónica publicada na Revista 2 de 26 de Janeiro de 2014

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