Oração

Alguns leitores oferecem-me preces. Pagelas ou folhas arrancadas de um caderno onde anotaram orações aprendidas com os pais ou com os avós. Querem que me cure, me proteja, me salve, não me perca, me inspire muito, escreva mais e seja feliz. Uma senhora ofereceu-me uma vela para acender a Santa Margarida que me ajudará a engravidar a minha namorada, outra trouxe um bocado de terra de Fátima para um vaso da casa que daria flores até no Inverno. Já me deram alguns terços, um buda para a paciência, um deus chinês, ou deusa, que me apoiaria no exercício de meditação, já me abençoaram de umas quantas maneiras e alaridos, como também me fizeram o passe espírita para limpar o corpo de mau olhado. Uma noite, sentaram-me num sofá para experimentar o reiki, a suspirarem muito como se perdessem o ar ou tivessem prazer. Eu, de olhos vendados, guardo a incerteza até hoje.

Como sou um refilão, abro sempre a boca para dizer que acho a JSD homofóbica, que o Governo odeia o seu próprio povo ou que João Paulo II não pode ser canonizado porque encobriu centenas, talvez milhares, de padres pedófilos, é comum os leitores crentes na transcendência acharem que estou à deriva, sem qualquer confiança espiritual, carente de uma qualquer luz divina. Acham que sou comunista, anarquista, niilista, ou outra coisa menos identificável e mais contemporânea. Por isso me trazem orações, convencidos de que o poder evocativo de determinados textos transformará a minha consciência e me levará à paz.

Gosto sinceramente que as pessoas confiem no poder evocativo de um texto. Dá-me muita esperança na literatura.
A verdade é que sou um refilão cheio de espiritualidades, muitas dúvidas e queixas, mas não consigo largar a expectativa dos meus tempos de menino, educado para acreditar e respeitar. Penso sempre que não sei se deus existe, mas não hesito em acreditar que São Bento, São Bentinho maravilhoso, existe. Porque me concedeu uma graça quando miúdo. Também há muito quem diga que me curei pela minha cabeça, como se tivesse um cérebro melhor do que os outros, literalmente capaz de, numa noite, fazer desaparecer as minhas feridas em sangue. Enfim. Eu gosto de conceber que bastante do que existe nos escapa e há-de haver sempre uma esperança para que os vinte e oito gramas da alma se justifiquem.

O certo é que, em situações de angústia, quando a vida tem o seu susto, pensar que São Bento me ajudará é chave para uma confiança que mais nada me confere. Não falo em quaisquer sustos. Aconteceu em pouquíssimas ocasiões. Três pedidos em toda a vida de adulto. Como agora.

É o que acontece quando internam um menino, filho de um casal amigo, que sinto como meu sobrinho. Brinquei sempre dizendo que ele também era como meu filho adoptivo, o que faz o carinho comparecer mais e mais.
Internarem um miúdo com idade para nosso filho é muito mau. E dizerem-nos coisas terríveis sobre tumores na cabeça e doenças complicadas, com terapias de cortar à faca e químicos e sei lá que mais, é pior que mau. É de uma tristeza profunda que não há como esquecer. Contamos os dias pelas notícias que nos dão dele. Acordamos a pensar que precisamos de estar perto e de saber. Precisamos de ajudar.

No Hospital de Santo António o pessoal sorri. Colhemos nos sorrisos a esperança toda e andamos à cata de sinais. O sorriso parece uma promessa de bem, uma garantia para a cura. Queremos uma cura. Eu disse à enfermeira que lhe dou os rins, os pulmões, o estômago, o coração, podemos tentar dividir o que for divisível, de outro modo, cheguei aos quarenta e dois anos com tremendas experiências de profunda plenitude, podemos preterir-me em favor do menino. Afinal, um coração não se parte ao meio, não é para dois. Toda a vida me mentiram. A enfermeira sorriu. Gostava tanto que eu tivesse descoberto assim a solução.

Fui pedir a São Bento. Mesmo com as minhas complicações e trafulhices de alma, mesmo com meus defeitos, erros, desvios, heresias e queixinhas eternas. Não sei mais o que fazer e preciso de fazer alguma coisa. Compreendo, melhor do que nunca, os leitores que me ofereceram preces. Agradeço-lhes muito. A vida leva-nos sempre a um desafio que nos repensa.

 

Crónica publicada na Revista 2 de 26 de Janeiro de 2014

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