O rio que corre pela minha aldeia

Alberto Caeiro, heterónimo dado a meditações fluviais, queixava-se de que “O Tejo desce de Espanha / E o Tejo entra no mar em Portugal /Toda a gente sabe isso / Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia / E para onde ele vai / E donde ele vem”. Isso era dantes. Agora sabemos de onde vem e para onde vai o rio da nossa aldeia: vem de todo o lado e vai para as nossas casas, principalmente se forem no rés-do-chão. Ainda bem.

É com orgulho alfacinha que constato que a minha cidade se tornou um destino turístico ao nível de Nova Iorque ou Paris, só que em superior. Lisboa também é bonita, histórica, moderna e monumental, mas alia a essas qualidades uma característica única, que é ser também um parque de diversões aquáticas. Além do Castelo de São Jorge ou do Mosteiro dos Jerónimos, temos ex-líbris como os Rápidos de Alcântara ou o Géiser dos Restauradores, que faz as delícias da pequenada. Isto para não falar dos espectáculos náuticos: na Roma Antiga, inundava-se o Coliseu para se encenarem batalhas navais da antiguidade, mas Lisboa ultrapassa Roma por estibordo e agora submerge a Baixa para se recriar a Batalha do Atlântico, em que os autocarros são os navios aliados, os carros são os submarinos nazis e os transeuntes são os torpedos.

E o que dizer da luz de Lisboa, só que vislumbrada debaixo de água? Como indígena, deixo uma dica para visitantes: mergulhem na Praça de Espanha e olhem na direcção da Av. de Ceuta. É onde a refracção da luz cria o efeito mais bonito. Cautela é com o cacilheiro que vem de Monsanto.

Quem viu o ar de felicidade de um turista belga a fazer rafting na Rua das Pretas (antes de se agarrar a um lençol pendurado num estendal e passar a fazer windsurf — são muito indecisos estes turistas) percebe que Lisboa já é uma referência para apreciadores de desportos radicais.

Esta mudança implica muito trabalho. Antes, para poder haver um caudal consistente, era preciso reunirem-se as condições ideais: i) serem as primeiras chuvas da época; ii) as sarjetas ainda não terem sido desentupidas; iii) a maré estar cheia e iv) o Instituto Português do Mar e da Atmosfera não telefonar a avisar “olhe, é para dizer que está farrusco e é capaz de chover”. Mas, graças aos esforços da autarquia, já não é necessária essa coincidência de factores para haver um bom swell a qualquer hora. Foi sorte António Costa querer limpar o PS antes de limpar as sarjetas.

O benefício para a economia da cidade é enorme. Só em aluguer de material de mergulho para os turistas participarem na visita guiada “Lisboa em Escafandro” factura-se um balúrdio. Mas não são só os privados a ganhar. O Estado também lucra. A ASAE fartou-se de aplicar coimas aos donos de cafés que insistiam em agarrar-se às mesas das esplanadas sem terem carta de patrão da costa. Além, óbvio, do pecúlio arrecadado pelos radares da PSP, a multarem tudo o que navegasse a mais de 20 nós.

Como concluía Caeiro: “O rio da minha aldeia não faz pensar em nada/ Quem está ao pé dele está só ao pé dele.” Tirando aquelas alturas em que estamos dentro dele, é mesmo isto.      

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