O “Profeta Elias”

Nós, jornalistas, até vamos encontrando lugar para a voz de quem sofre de alguma perturbação mental ligeira, como a ansiedade, mas muito pouco para quem se debate com perturbações mentais consideradas graves, como a esquizofrenia.

Anuncia-se como o “Profeta Elias”. Diz que descobriu que era um “enviado do Senhor” na sexta-feira de Páscoa de 1983. 

Uma noite, sonhou que ia atravessar uma ponte romana e viu Satanás do outro lado. Apavorado, chamou: “Pai! Pai! Pai!” Acordou num sobressalto. Tranquilizou-o recordar que chamara por Deus. Noutra ocasião, sonhou que estava ajoelhado junto à cama e que Deus lhe apareceu.

Teve outros sonhos na mesma linha. Conta-os nas cartas que escreve. Escreve muitas. Longas. Deu-me algumas quando o conheci, na clínica psiquiátrica do Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo, em Matosinhos. E um desenho de Jesus Cristo que pintou com lápis de cera. E uma das “machadinhas” que faz com paus e pedras que vai encontrando nas áreas comuns da prisão. É um artista. Gosta de pintar paisagens e imagens religiosas. E é a isso que dedica as suas tardes.

O “Profeta” tem os dedos amarelecidos pelo tabaco. Usa a barba grande e o cabelo comprido, preso num rabo-de-cavalo. Fala num tom tão baixo que é quase um murmúrio. Diz que é “o filho varão anunciado no Apocalipse” e que há-de “gerir todas as nações com uma vara de ferro”.

Está preso desde Janeiro de 2004. Preso não é o termo técnico correcto. Está a cumprir uma medida de internamento. É inimputável em razão de anomalia psíquica. Tem, de acordo com o médico que o diagnosticou e com a médica que o acompanha, “uma psicose delirante crónica, sintoma de esquizofrenia, com actividade delirante sistematizada de conteúdo místico”.

Lá fora, já apanhava pedras e outros objectos que ia encontrando na rua. Levava-os para casa para fazer as suas obras de arte. Queria transformar a casa num museu. Por diversas vezes, tentou pôr a mãe na rua. Nos piores dias, ameaçava que a matava. Também ameaçava vizinhos. Certo dia, anunciou que no domingo seguinte iria à igreja e que mataria quem lá estivesse. Não fez isso, está bom de ver, mas muitos vizinhos, receosos, não se atreveram a ir à missa.

“Sabe por que estou preso?”, perguntou-me. “Estou preso porque combati a Igreja Católica Apostólica Romana e combati os tribunais por consentirem que transporquem o santo nome de Deus. Chegam ao ponto de O mandar à merda, com licença da palavra. Um profeta não pode permitir uma coisa destas. Eu fui preso. Não estiveram para ouvir aquilo que eu dizia.” 

De acordo com o processo, estavam uns rapazes no café, ele entrou, sentou-se ao pé deles e começou a falar em Deus. “Deus é vosso amigo.” Um dos rapazes não estava para aquilo: “Não venhas a esta hora para aqui falar em Deus, que me dói a cabeça. Se queres falar, fala de outra coisa.” E ele exaltou-se. “Se estiveres calado, deixo-te viver. Se não, mato-te já na hora.”. Mostrou-lhe o formão que trazia na mochila. O rapaz ainda lhe perguntou o que diabo queria dizer com aquilo, mas o “Profeta” não se pôs com explicações. Espetou-lhe o formão no lado esquerdo do peito.

Não está só. Há uma familiar que o visita e que se responsabiliza por ele nas saídas de curta duração. Queixa-se de lhas terem suspendido temporariamente por não ter regressado no tempo marcado. “Não podem fazer isto aos inimputáveis”, protesta. “Chovia tanto, tanto, tanto. Fui visitar o padre, falar com ele. Eu não ia pôr a minha prima a fazer a viagem debaixo de um temporal.”

Não o referi na reportagem que escrevi. Primeiro, por ter posto o enfoque na eternização das medidas de internamento, o que me levou a optar por pessoas reclusas há mais de 25 anos. Segundo, por me levantar várias dúvidas. Era evidente que o delírio tomara conta da personalidade dele.

O “Profeta” escreveu-me uma carta. Ficou zangado por não ter falado nele nem na queixa que me fez. E eu fiquei a remoer.

É verdade que nós, jornalistas, até vamos encontrando lugar para a voz de quem sofre de alguma perturbação mental ligeira, como a ansiedade, mas muito pouco para quem se debate com perturbações mentais consideradas graves, como a esquizofrenia. Talvez por pudor. Talvez por haver tão pouca gente disposta a assumir que tem uma doença destas e a falar sobre isso. Inegável que há um forte estigma associado à perturbação mental. E que na maior parte dos casos estamos a falar de uma condição médica que tem tratamento. Só que tudo parece mais exequível quando o caos está arrumado, as dificuldades superadas, as batalhas ganhas.

A Crónica encontra-se publicada no P2, caderno de Domigo do PÚBLICO

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