O fim do mundo vai chegar ontem

Não é preciso viver como se o desastre estivesse sempre ao virar da esquina – o desastre vai chegar para cada um de nós de qualquer forma, e quando chegar dificilmente receberemos uma notificação

Na minha rua jogava-se muito à bola, mas o nosso desporto favorito só começava quando os jogos estavam quase a acabar. Era mais certo do que um filme do Quentin Tarantino com muitas asneiras: muda aos cinco e acaba aos dez e a nossa equipa está a perder por 9-0, mas agora é que é – quem marcar, ganha.

Era como se tudo começasse de novo outra vez, para quê ficarmos parados a ruminar em cima desse detalhe que é a iminência de uma derrota copiosa e mais certa do que um filme do Quentin Tarantino com música dos anos 70. Agora é que é – quem marcar, ganha.

Clausewitz disse tudo sobre a política e a guerra, mas não há registos de que percebesse alguma coisa sobre crianças e adultos. Eu pego nas palavras dele e ajudo a completar esse vazio: os adultos são a continuação das crianças por outros meios.

O fim do mundo está a chegar, é o Trump é o Trump vou-te devorar – este é o “muda aos cinco e acaba aos dez mas quem marcar ganha” dos adultos. Porque supostamente o mundo ia acabar com o "Brexit". Mas afinal, não; o mundo vai mesmo acabar é com a eleição de Marine Le Pen. E o busto do Cristiano Ronaldo, já viram? Só mesmo neste país, meio mundo a mamar na teta do Estado e mais não sei quê.

Sim, eu sei que as pessoas mais vulneráveis aos caprichos da verdade vão dizer que o mundo não se resume ao Facebook e ao Twitter, mas também é verdade que não me dá jeito nenhum atrapalhar esta crónica com esse pormenor. Afinal, o mundo também não se resumia àqueles jogos de futebol na minha rua, e eu posso garantir que não pensava em mais nada sempre que o Rui Cabeças ou o Peco me passavam a bola por baixo das pernas – uma tragédia que acontecia sempre, ponto final, era mais certo do que um filme do Quentin Tarantino com um Mexican standoff.

E não se trata de desvalorizar a vitória do "Brexit" nem a eleição do Trump – nem mesmo as parvoíces do senhor do Eurogrupo e esse cataclismo que é o busto do Ronaldo, ai meu Deus que não sei se posso dizer que gosto mais do Messi. E muito menos as correntes no Facebook, que não podemos quebrar senão morremos todos e levamos as famílias atrás – eu não acreditava nestas coisas, mas se subtraíres cinco anos à tua idade e somares cinco anos à idade da pessoa que mais admiras, vais ver que perdeste uns bons dez segundos a ler isto.

De repente, andamos a viver debaixo de uma tensão permanente, em que nada é o fim de nada e tudo é o fim de tudo, até que começa um novo dia e tudo começa outra vez, muda aos cinco acaba aos dez mas quem marcar ganha.

É como se um jovem que estivesse a trocar mensagens com um amigo levantasse os olhos de repente e fosse surpreendido pela mulher e pela filha mais velha com a notícia de que vai ser avô; é como se um casal que pousasse os telemóveis em cima da mesa de jantar durante cinco segundos para tirar arroz reparasse que lhe tinham nascido dois filhos há quatro e há seis anos, respectivamente.

Não sei se já vos disse, ou se passaram pelo Google hoje, mas a Terra gira à volta do Sol a 30 quilómetros por segundo, já andamos depressa de mais se pensarmos bem nisso. Não é preciso viver como se o desastre estivesse sempre ao virar da esquina – o desastre vai chegar para cada um de nós de qualquer forma, e quando chegar dificilmente receberemos uma notificação. E isso, meus amigos, é mais certo do esta frase ter aqui outra referência a um filme do Quentin Tarantino.

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