O drive in da morte

Um Estado que não consegue cuidar dos seus doentes às portas da morte pouco fundamento moral terá para negar a cada cidadão a decisão sobre quando e como morrer, se confrontado com uma doença terminal

Esta era para ser uma crónica pretensamente bem-humorada sobre os manuais escolares da minha filha que entrou no 2.º ano do básico e o facto de a professora ter optado por não permitir que os seus alunos escrevam ou pespeguem neles os autocolantes com que vêm munidos para garantir a hipótese de virem a ser devolvidos e reutilizados. Também me ocorreu perorar sobre as escatológicas tentativas de desfralde da minha filha mais nova. Mas o que me bombeia o sangue nos últimos dias é uma frase que ouvi ao António Lobo Antunes que, numa demoradíssima entrevista ao jornalista João Céu e Silva, confidenciava que, no buraco temporal entre livros e no rescaldo de um cancro, se deixava por vezes tentar pela ideia de suicídio e dos comprimidos que guardava consigo para o caso de.

Aconteceu ter esbarrado na entrevista poucos dias depois de ter fechado a última página do Dizer Adeus (Cavalo de Ferro, 2014), um livro em que Laura Ferreira dos Santos, pioneira na defesa da despenalização da eutanásia, se demora num longo abraço ao irmão que morrera. O que pesa naquelas 125 páginas é a enorme solidão que as atravessa, numa sociedade que, como ela demonstra com casos concretos mas sem teorizar, deixou de ter espaço para o luto. Laura morreu no ano passado, em sua casa como desejara, depois de vários anos a lidar com um cancro da mama, com direito a recidiva e a metástases ósseas que lhe provocavam profundas dores. Nos seus últimos anos, Laura, que era uma católica convicta, fora-se afastando (ou sendo afastada) da Igreja Católica – que não da ideia de Deus –, por não se rever numa instituição que, entre outros, lhe recusava o direito a “ não morrer aos bocadinhos”, como dissera numa entrevista à Visão: “Sei como fazer, mas entristece-me muito que tenha de ser assim: sozinha e na clandestinidade, para não incriminar ninguém. Sem sequer conseguir falar abertamente com um médico (…). Não concebem o suicídio racional. Mas a minha vida sou eu que a conduzo, e a minha morte também.”

Laura livrou-se de morrer no décor asséptico, funcional mas anónimo de um hospital, onde ocorrem segundo as estatísticas mais recentes cerca de 60% das mortes em Portugal, e escapou também às unidades de cuidados paliativos, das quais o pouco que se sabe com absoluta certeza é que são escassíssimas, despersonalizantes e sujeitas a enormes listas de espera. No caso de Laura, o pudor e a reserva de intimidade com que os jornais trataram a notícia da sua morte, não permite vislumbrar as suas circunstâncias concretas. Mas não é difícil, a partir do que ela foi dizendo em inúmeras entrevistas, imaginá-la a pegar no medicamento certo, comprado na Internet, com tempo para se despedir do marido e dos sobrinhos. A questão está nos anos que gastou a lutar pelo direito a escolher como suportar a superfície fria da morte e na profunda solidão que atravessou para chegar a este momento depois do qual tudo fica reduzido a nada.

Como teria Laura vivido e escolhido morrer se tivesse nascido na Holanda? Num país que tem a eutanásia regulada desde 2002, uma organização sem fins lucrativos, a Stichting Ambulance Wens (numa tradução tosca, dá qualquer coisa como “a ambulância do desejo”) dedica-se a cumprir os últimos desejos de doentes terminais. O jornal espanhol El País dedicou alguns caracteres ao assunto para contar que a maioria dos últimos desejos tinha que ver com gestos tão prosaicos quanto o reencontro com familiares ou amigos distantes, uma derradeira visita à praia ou ao futebol, um almoço especial. Havia ainda, entre os sete mil doentes terminais assistidos, quem tivesse pedido uma visita ao Rijksmuseum para um último vislumbre aos quadros de Rembrandt.

Tal domínio sobre a forma como é colocado o ponto final na vida de cada um é utópico num país que, como Portugal, tanto se encarniça sempre que alguém se põe a querer discutir a despenalização da eutanásia ou da morte assistida mas que continua a tratar tão mal os seus doentes terminais. Estes ou permanecem internados e deixam de ser donos de si mesmos e dos seus corpos, sujeitos a dores, humilhações, aparelhos e tubos, ou são mandados para casa com uma parafernália medicamentosa cuja decifração requereria, no mínimo, cuidados domiciliários que não existem. Ora um Estado que não consegue cuidar dos seus doentes às portas da morte pouco fundamento moral terá para negar a cada cidadão a decisão sobre quando e como morrer, se confrontado com uma doença terminal que apenas lhe perspectiva uma longa e penosa deterioração.

O debate parlamentar que se há-de fazer na sessão legislativa que agora começa sobre a despenalização da eutanásia ou da morte assistida deveria ter, no princípio e no fim, a ideia de que o Estado não é dono da morte. Nem pode impor a sua medicalização à impotência dos cidadãos.

E podia ser, já agora, que à boleia disto se abrisse na sociedade portuguesa espaço para aquilo a que o padre José Nuno, durante 18 anos capelão no hospital de S. João, no Porto, chamava em entrevista ao PÚBLICO a ressocialização da morte. Implica isto que se reintegre a morte no quotidiano das pessoas, dando-lhes espaço para acompanhar os moribundos que, tal como viveram no olhar dos outros, precisam de morrer no olhar dos outros. Alegava o padre que a insistência naquilo a que alguns pensadores chamam a “sociedade pós-mortal”, caracterizada pela total erradicação da morte do espaço público, não fará mais do que agravar as patologias mentais associadas ao escondimento da morte e à negação da dor.

A preocupação nem é de hoje. Há muito que os psicanalistas alertam para o facto de os funerais rápidos e os lutos escamoteados desencadearem perturbações psíquicas. Na sua volumosa obra, História da Vida Privada (Edições Afrontamento, 1991), o historiador Philippe Ariès já se questionava “se uma grande parte da patologia social de hoje não tem a sua fonte na evacuação da morte da vida quotidiana e na interdição do luto e do direito de chorar os seus mortos.”

Portanto, ou reaprendemos a falar da morte e do luto, fazendo frente ao medo que a sua inevitabilidade nos convoca, como preconizava Laura Ferreira dos Santos, ou exploramos o potencial de negócio dos funerais fast food importando o exemplo do Japão onde uma funerária lançou recentemente a possibilidade de funerais drive in em que os enlutados não precisam de sair do carro para o último adeus ao morto, deixando-se ficar ao volante enquanto uma câmara os grava na despedida ritualizada que é costume fazer-se e depois retransmite as imagens para a sala onde decorre o velório.

Não tenho grandes dúvidas sobre o destino onde nos levará um e outro caminho enquanto sociedade, mas, enfim, para a próxima prometo limitar-me a falar de manuais ou de fraldas.

Esta Crónica encontra-se publicada no P2, caderno de Domingo do PÚBLICO

Sugerir correcção
Ler 2 comentários