O bife de Judas

Desde que, em 1383, o Mestre de Avis interrompeu o almoço do Conde Andeiro para lhe dar uma palavrinha (mesmo no meio das costas), as lutas pelo poder em Portugal estão intimamente ligadas a refeições.

Houve Cavaco Silva e a fatia de bolo-rei estrategicamente atafulhada na boca, para evitar responder a questões sobre a campanha presidencial que então disputava com Jorge Sampaio. Houve (ou melhor, não houve) a vichyssoise que Marcelo garantiu a Portas ter sido servida no Palácio de Belém, num jantar que não chegou a existir. E há, agora, o caso do restaurante da Mealhada em que 15 militantes do CDS pagaram 19 refeições (18 doses de leitão, mais um bife) porque o dono se queria vingar das políticas do Governo.

Um caso gravíssimo, pois põe em causa o regime democrático, através do ataque a um dos partidos que o sustentam. Um caso que corrói a confiança que o povo português deposita no sistema representativo que o governa. O CDS está a ser vítima de um ataque vil. Há que encontrar o culpado e pará-lo, antes que seja tarde de mais. Não é preciso procurar muito. Basta responder à pergunta: quem é o tolo que, num restaurante de leitão, pede bife?

É, claramente, um traidor. No partido que defende as tradições portuguesas, a lavoura, a Feira da Golegã e a apanha do percebe, alguém que pede bife na Mealhada é um Judas, que em vez de se revelar com um beijo, revela-se ao escolher vazia em vez de boa chicha de porco juvenil. Ir à Mealhada e comer um bife é tão mau como ir a Roma e matar o Papa. Aliás, hoje em dia, é capaz de ser pior, porque o Vaticano agora até tem um Papa sobresselente, seminovo, pronto para qualquer contingência.

Mais: como é que um militante do CDS, depois de um congresso onde foram tão desagradáveis para o PSD, esnoba o valor simbólico de pedir um animal que vem para a mesa a trincar uma laranja? Não se pede sentido de Estado, mas, pelo menos, um mínimo de sentido de metáfora.

O CDS deve levar a sério esta ameaça. Mas, até agora, só se viu a costumeira bandalheira por parte da direita. (Num jantar do Bloco de Esquerda no restaurante tibetano, se alguém não quiser comer a sopa de rebentos de soja, nem passa pelo acampamento de reeducação, leva logo com um processo disciplinar em cima.) Sim, ele usa calças beges. Sim, os sapatos de vela são castanhos. Sim, o pullover amarelo está posto aos ombros da forma correcta. Mas a recusa em papar leitão é um indício que não se pode ignorar: o sujeito é um cavalo de Tróia. Até pode ser um cavalo de Tróia ruço que se chama Gingão, mas que isso não sirva para distrair.

Claro que os problemas do CDS não têm só que ver com este traidor. As 18 doses cobradas aos outros 14 militantes também merecem reflexão. É lamentável que 18 homens comam apenas 1,2 doses de leitão cada. É quase anorexia. A minha filha, com três anos, quando vai à Mealhada come duas doses. E pede para lhe encherem o biberão de molho picante. E estes latagões do CDS, o partido da tourada, contentam-se com quatro peças do suininho? Não confio em gente que, podendo pedir um bicho só para si, decide por uma co-adopção de leitão.

Crónica publicada na edição de 2 de Fevereiro da Revista 2

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