O ajustamento da procura de propriedade alheia

Mais uma semana, mais um índice que demonstra como a austeridade está a destruir Portugal. Desta feita, é o Relatório Anual de Segurança Interna, sobre a criminalidade no país em 2013. Peço desculpa por atirar estes números chocantes sem avisar, assim à bruta, mas a trágica realidade é que houve uma diminuição de 6,9% na criminalidade geral e 9,5% na criminalidade violenta. Os cortes cegos do costume, portanto.

Como tantos indicadores económicos, o crime caiu. E não é por falta de vontade: bastar ler a comunicação social para saber que quantos mais pobres há, mais ladrões existem. O que falta são condições. A resposta à crise conduziu-nos a um beco sem saída. Um beco sem saída em que, se encontrarmos alguém, não nos vai assaltar.

O declínio começou, mal a troika chegou. Desde 2011, houve uma redução de 36.836 crimes, uma clara contracção do consumo de bens de outras pessoas. O que é óbvio, já que a maior parte dos portugueses em idade para serem vítimas teve de emigrar. E, sem vítimas, o criminoso não medra. Há cada vez menos amigos do alheio. E que fim podemos esperar para um povo onde falta a amizade?

Se analisarmos os números, o retrato é ainda mais aflitivo. Por exemplo, o “furto em edifício comercial ou industrial com arrombamento, escalamento ou chaves falsas” teve uma quebra de 12,4% e o “roubo por esticão” desceu uns arrepiantes 16,8% (leu bem: 16,8%!). Dois tipos de crimes que têm em comum a necessidade de boa forma física por parte do gatuno. Sucede que, com esta carestia, os ladrões não se alimentam como deve ser. E ninguém foge de uma idosa a quem se furtou a carteira sem ter comido um bom pequeno-almoço.

Outro índice que sofreu um abaixamento foi o da “condução de veículo com taxa de álcool igual ou superior a 1,2 g/
l sangue”. Pudera! Com a combinação de preços proibitivos da gasolina e do vinho, quem é que se pode dar ao luxo de conduzir irresponsavelmente pondo em risco a vida de terceiros? É mais uma liberdade cerceada.

Mas a crise não ataca só o bem-estar material. O bem-estar mental também é posto em causa. Aumentam as depressões. Com elas vêm as perdas de líbido e as consequentes diminuições do número de violações e outros crimes sexuais. Aliás, a queda dos “roubos a ourivesaria” é um sinal de que o larápio hodierno já nem se dá ao trabalho de oferecer uma jóia à mulher. A crise tira o desejo de amar.

Os dados são claros. Mesmo quando tenta mascarar os números, o Governo é descoberto. O relatório aponta algumas áreas em que o crime subiu, como o “furto de oportunidade de objectos não guardados”, que aumentou de 7960 para 9533 ocorrências. Mas é uma ilusão. “Objectos não guardados” é eufemismo para “coisas que as pessoas não se lembram onde puseram”. Na realidade, este indicador só prova que os portugueses não conseguem fazer uma alimentação rica em peixes como o atum e a sardinha, óptimas fontes de ómega 3, um óleo gordo benéfico para a memória.

O próprio aumento da “violência doméstica sobre cônjuge” é falacioso. Com todas as condicionantes à prática do crime, é natural que o criminoso se veja obrigado a prevaricar em sua casa. Tal como os trabalhadores que, em vez de almoçarem fora, levam restos do jantar em tupperwares. A violência doméstica é a marmita do crime.

Esta política rouba-nos o futuro. Haja alguém que ainda consiga roubar.     

Sugerir correcção
Comentar