London London

1. Estou em Londres e é quarta-feira, o que quer dizer que acabo de tomar café lendo na imprensa inglesa sobre a “humilhação abjecta” do Brasil. Não num tablóide, no Guardian mesmo, e não numa coluna de opinião, no lead da notícia. A imprensa no mundo vai acabar antes de chegar aos pés da imprensa inglesa, é muito carácter. E se Londres acabar, é porque as cidades já terão acabado: o bairro onde estou tem o seu próprio jornal. O seu parque, a sua biblioteca, as suas ciclovias, os seus autocarros 24 horas, as suas estações de overground, a sua recolha de lixo separado, os seus mercados orgânicos, os seus habitantes do mundo inteiro, a sua rádio local e o seu jornal, incluindo caderno de cultura, que qualquer pessoa leva de graça, por exemplo da biblioteca. 

2. A biblioteca está aberta sete dias por semana, com dezenas de computadores. Sempre que lá fui estava cheia, gente de todas as cores, um piso para crianças. Mas, claro, não sei como será voltar para um daqueles Council Flats que existem quase em cada rua, microapartamentos sem bay windows, sem jardins, sem bicicletas à porta, para não falar dos Mercedes. A minha amiga que mora no bairro fica fascinada por eles morarem cara com cara, de cada lado do passeio, os das janelas minúsculas que não têm computador em casa e os das bay windows que pagam milhares de libras de aluguer. Ela é carioca e isso seria impensável no Rio de Janeiro. 

3. O silêncio seria impensável no Rio de Janeiro. O silêncio do autocarro que chega deslizando, pontual ao minuto, de acordo com a tabela digital na paragem; o silêncio do condutor protegido por um vidro que não deve ser abordado, porque uma gravação a bordo diz tudo o que é preciso, onde estamos e para onde vamos. Só à noite, depois do álcool, esse silêncio se quebra, vira purga da semana inteira em London London.

4. Todas as manhãs entro na sala da minha amiga, Caetano Veloso olha para mim da capa de um álbum, Outras Palavras, e eu penso noutro álbum, aquele que tem London London, o exílio de Caetano durante a ditadura brasileira.

I’m lonely in London, 
London is lovely so
I cross the streets without fear
Everybody keeps the way clear
I know I know no one here to say hello
I know they keep the way clear
I am lonely in London 
without fear
I’m wandering round and round, nowhere to go
While my eyes go looking for flying saucers in the sky

5. Vi a vitória do Brasil sobre a Colômbia na casa de uma carioca namorada de um inglês. O melhor de tudo foi vê-lo a ele a vê-la a ela. O mundo vai acabar antes de a vida num inglês chegar aos pés da vida numa carioca. Não vi a vitória da Alemanha sobre o Brasil, só soube na rua, já tarde. Supus a minha amiga em prantos, o incêndio no Rio de Janeiro. Quando cheguei a casa, ela ria porque as notícias do Rio eram que depois de acabar o jogo rolara até samba no Cardosão. 

6. Mas bem que os ingleses se esforçam, de qualquer raiozinho fazem um solário. Nunca tinha ido a Hampstead Heath com mais de 20 graus. Fui com a minha amiga no overground, parecia a praia. Há décadas que Hampstead tem esta tradição, lago de mulheres, lago de homens, lago misto. E o misto era uma amálgama de corpos pálidos, biquínis nada brasileiros, mas finalmente biquínis.

7. Não é preciso sair do bairro para tomar banho de sol, porque a três quarteirões está London Fields, um daqueles parques com grandes relvados delimitados por grandes árvores, zona infantil, zona de barbecue, piscina aquecida, jogadores de críquete louros e vestidos como nos anos 1930, basquetebolistas negros e altos como em Nova Iorque, campos de papoilas e violetas com caminhos aos esses, mães vietnamitas empurrando carrinhos de bebé, dezenas de bicicletas e centenas de corvos. É, ao mesmo tempo, completamente londrino e completamente cosmopolita. Dia sim, dia não, vou, volto, passando aquelas casas com sacos à porta que dizem Garden Waste, transbordando de folhas e ramos. E, à noite, os guinchos nas traseiras da minha amiga serão raposas a copular loucamente. London London.

8. Vida de bairro, com poucas excepções. Ontem apanhei o 38 e atravessei a cidade até Cambridge Circus para ver a nova Foyles. Continua a ser em Charing Cross, cinco andares, provavelmente a maior livraria de Londres, embora o único livro de 2013 que pedi para procurar no computador não existisse, e eu tenha saudades do chão que range. O café do quinto piso tinha uma senhora brasileira a organizar as tartes. Dava ordens em brasileiro porque o empregado também era brasileiro. Isso aqui está cheio de brasileiros, confirmou ela, recomendando-me os scones doces, mais gostosos. Preferi os salgados e foi então que soou o alarme: a voz grave de um cavalheiro britânico instava-nos a evacuar o edifício imediatamente sem usar os elevadores. Então centenas de pessoas abandonaram scones, tartes, novelas gráficas, a edição de bolso do The Goldfinch de Donna Tartt que está em primeiro lugar no top, talvez mesmo Skylight de José Saramago e A Man: Klaus Kump de Gonçalo M. Tavares, únicos romances portugueses que vi em destaque na Fiction A/Z, ou seja, fora da mais recôndita secção Portuguese. Nada de pânico, nada de barulho, tudo descendo ordeiramente os cinco pisos, porque alarme de incêndio é mato em Londres, explicou depois a amiga portuguesa com quem me encontrei quando o Brasil estava a sofrer a sua “humilhação abjecta”. 

9. Em Trafalgar, um pastor negro bradava por Jesus de punho cerrado enquanto homens-estátuas vestidos de Guerra das Estrelas entretinham os turistas e acrobatas negros davam cambalhotas frente à National Gallery. A novidade do último ano na praça é o galo azul-ultramarino, uma escultura gigante que rivaliza com Nelson e os leões. Azul-ultramarino no meio daquele bege-cinza que é a cor genérica de Trafalgar. Tão extravagante como só o detalhe extravagante do mais inglês dos ingleses.

Sugerir correcção
Comentar