“Informação comunicada a outros com base no respeito pelos outros”

Quem percorre a Net fica com a sensação de que vale tudo. Escudando-se numa ideia excessiva de liberdade de expressão, não falta quem seja parcial, injusto ou mesmo ofensivo. “Jornalismo não é liberdade de expressão.” Os jornalistas não podem publicar o que lhes vem à cabeça.

É um dos maiores desafios que hoje se colocam aos jornalistas em diversas partes do mundo: como fazer a cobertura de discursos políticos susceptíveis de servir de combustível ao medo, à aversão pelo “outro”, à violência?

O assunto não é novo. O discurso de ódio e o seu efeito estão na agenda desde o julgamento de Nuremberg. Entre aqueles que se sentaram no banco dos réus no pós-Guerra estavam alguns dos que mais contribuíram para diabolizar “o outro” com textos ou imagens. Entrámos numa nova era. Emerge uma classe política que manipula, promove abuso. E não falta quem considere discurso insultuoso noticiável só porque é proferido por políticos.

A Federação Europeia de Jornalistas está a desenvolver – em parceria com organizações de diversos países – uma campanha intitulada “Media Contra o Ódio”. Há pouco, em Zagreb, na Croácia, num workshop sobre como fazer a cobertura noticiosa de temas relacionados com migrações, refugiados e etnicidade, tive oportunidade de ouvir um dos jornalistas que mais têm reflectido sobre este assunto: Aidan White.

Aidan White passou por diversos jornais britânicos, incluindo Financial Times e The Guardian. Foi secretário-geral da Federação Internacional de Jornalistas antes de em 2012 fundar a Rede de Jornalismo Ético, uma organização que promove a deontologia através de educação, formação e pesquisa.

Naquele dia, começou por repetir um cliché: nunca houve tanta informação disponível. Fê-lo para lembrar que há uma grande diferença entre informação produzida sobre os próprios e informação produzida sobre os outros. O que mais abunda na Net é informação produzida sobre os próprios. Jornalismo é outra coisa. Jornalismo é informação produzida sobre os outros.

Quem percorre a Net fica com a sensação de que vale tudo. Escudando-se numa ideia excessiva de liberdade de expressão, sobra conteúdo parcial, injusto ou mesmo ofensivo. “Jornalismo não é liberdade de expressão”, lembrou. “Jornalismo é expressão restringida. Os jornalistas não podem publicar o que lhes vem à cabeça. Têm de trabalhar dentro de uma estrutura de valores. Jornalismo é informação comunicada a outros com base no respeito pelos outros.”

O código de conduta mais antigo foi escrito no Reino Unido no final do século XIX. Os que o seguiram englobam os mesmos princípios de rigor, independência, imparcialidade, responsabilidade. E isso não perdeu sentido com o advento da Internet. Pelo contrário. É vital para as sociedades, que precisam de estar (bem) informadas para compreenderem as complexidades do mundo.

Muito por força do digital, o jornalismo entrou num impiedoso processo de transformação. Redacções fragilizadas pela falta de meios têm de agir depressa (amiúde, demasiado depressa). Na Net, grassa uma cultura de gratuitidade, anonimato, abuso. E nem só os poderes económicos e políticos procuraram influenciar os jornalistas. É como se as audiências tivessem entrado nas redacções. Através dos conteúdos que produzem e das redes sociais, ajudam a determinar o que é notícia e a distribuir as peças jornalísticas. Nesta voragem, nem sempre é fácil perceber o que é discurso de ódio. Sobretudo quando deixa de ser básico, como o de Nigel Farage, e esforça-se para passar por discurso admissível, como o de Marine le Pen.

Para ajudar os jornalistas, a Rede de Jornalismo Ético desenvolveu aquilo a que chamou “lista de verificação de tolerância”. Aidan White esteve a explicá-la naquele dia. Perante declarações minadas pelo ódio, um jornalista deverá questionar-se: “Qual é o estatuto de quem disse isto? Que alcance teve este discurso? Qual é a intenção de quem o proferiu? Qual é o contexto económico, social e político? Há perigo de inflamar paixões e incitar violência? Estas alegações têm fundamento?” Antes de publicar a peça, repórter e editor devem tornar a questionar-se: “Evitámos clichés e estereótipos? Fizemos as perguntas relevantes e necessárias? Fomos moderados no uso da linguagem? As imagens usadas contam a história sem recorrer à violência e ao voyeurismo? Utilizámos fontes diversas e incluímos as vozes relevantes?” 

O teste aplica-se no noticiário nacional, mas também no noticiário internacional. E é este último que mais tem dado boleia ao discurso de ódio.

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