Fernando Rosas e o compromisso com a História

Muito do que hoje sabemos de quem somos e fomos como povo desde há cem anos a ele o devemos. Disto ninguém se jubila.

"As tarefas da História e os usos da memória" - isto é, o investimento que se faz quando se utilizam determinadas leituras do passado com uma finalidade especificamente política e/ou ideológica - "são indissociáveis do tipo de sociedade que queremos como presente e como futuro". Disse-o Fernando Rosas na quinta-feira passada, dias depois de se jubilar por ter completado 70 anos de idade, mais de 30 dos quais dedicados à investigação histórica, entre muitas outras atividades de uma vida muito preenchida. Naquela que ele próprio recusou que se chamasse a sua "última lição", Rosas quis recolocar os problemas fulcrais da relação entre a História, disciplina científica, e os processos sociais de fixação e reconstrução da memória coletiva no contexto, disse ele, da tentativa de implantação de "uma nova ordem conservadora e liberal, com formas brutais de acumulação de capital". Para ele, batalhas ideológicas pela representação do passado antecedem (e antecipam), quase sempre, fases de mudança histórica profunda em várias das dimensões da vida coletiva.

Depois de mais de 15 anos de militância antifascista, com três detenções pela PIDE, primeiro no PCP, depois dando origem ao MRPP, Rosas abandonou este último partido em 1980 e reorientou a sua vida para a investigação histórica. Demoraria quase outros quinze anos até retomar a atividade política militante quando funda o BE, em 1999. Quando, na segunda metade dos anos 80, com cerca de 40 anos, Rosas se lançou na carreira académica, viviam-se os anos do Cavaquismo, que, coincidentes com o fim da Guerra Fria e o desmembramento da URSS, trouxeram consigo toda a tralha do "fim das ideologias" e do "fim da história": a desvalorização social da explicação histórica do presente (do que Hobsbawm chamava, já então, um "presente contínuo"), a naturalização da desigualdade e da pobreza como puro fracasso individual, a inculcação "acrítica da lei do mais forte, da injustiça social, da destruição das forças produtivas" e da financeirização do capitalismo, a ilusão de que a mudança social se mediria pela tecnologia e não mais pela luta de classes (declarada superada) em nome de interesses materiais, ainda que eles sejam hoje mais contraditórios do que eram há 30 anos. Com Cavaco, regressava-se a uma História triunfal dos Descobrimentos e da expansão colonial, democraticamente reciclada em Lusofonia e na pseudo-universalidade dos valores portugueses, para cujo cultivo se dotou de dinheiro que nunca houve para outra investigação histórica a Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, que, nas políticas públicas de uso da História, pretendia ser (e, felizmente, não o foi muitas vezes) a versão cavaquista da política do Espírito dos anos 30 e 40. Em plena fanfarronice europeísta e uma década depois da descolonização, a cultura identitária da direita não vivia bem sem a velha retórica da grandeza histórica, apostando na desmemória do colonialismo, a dimensão em que ela (de que tanto falou Rosas há dias) mais eficaz foi. Neste quadro, estudar a ditadura, verificar a sua génese fascista, denunciar a aplicação da velha teoria totalitária (que, servindo os objetivos do Ocidente na Guerra Fria, confundia como "totalitários" o nazismo e o comunismo, e, pelo contrário, descrevia como "ditaduras pluralistas" os "autoritarismos" como o salazarista) - tudo isto foi tomado como História militante, como resquício da "ditadura cultural marxista" de que a direita gostava de se dizer vítima, mesmo quando ocupava já a enorme maioria das tribunas mediáticas, dominava o topo da administração universitária e dos departamentos académicos e silenciava/caricaturava o pensamento alternativo, por pouco marxista que fosse.

Fundador do Instituto de História Contemporânea, em 1990, Rosas soube transformá-lo na mais produtiva e numa das mais plurais unidades de investigação da sua área. Fê-lo orientando os estudos de sucessivas gerações de jovens investigadores, promovendo a publicação dos seus trabalhos (de perfil tantas vezes oposto ao das interpretações de Rosas),  ajudando a consolidar a evidente apetência por obras, documentários e ficção sobre o séc. XX português. Foi figura central na batalha pela abertura plena dos arquivos centrais da ditadura (para começar, o de Salazar e o da PIDE/DGS), nos tempos em que Santana Lopes e Borges de Macedo impunham uma política de controlo arbitrário do acesso aos documentos da ditadura, que em tudo se aproximava de verdadeira censura. Ao romper-se este bloqueio com o fim do Cavaquismo, a investigação sobre o Salazarismo pôde fazer a sua revolução epistemológica: ler o passado depois de empenhadamente se sujar as mãos em toneladas de fontes primárias da ditadura permitiu relegar ao ridículo quem dizia que a historiografia sobre o Estado Novo não era mais que discurso ideológico dos "vencedores do 25 de Abril", ao mesmo tempo ajudava (ainda hoje ajuda) a perceber o vazio da pura provocação intelectual de quem, mais nos media e nos livros de (má) divulgação histórica do que na produção científica em si, faz, como diz Rosas, "revisionismo de registo historiográfico" que não pretende mais do que banalizar/"normalizar" a ditadura, apresentando-a como a "aurora" que "redimira" Portugal do "regime terrorista e caótico" que teria sido a República, um respeitável projeto conservador de reposição de ordem nas ruas e de dignidade das funções do Estado, em determinado momento empenhado numa guerra de patriótica defesa dos portugueses e dos seus interesses em "províncias ultramarinas" assoladas pelo "terrorismo". Como tenho escrito várias vezes, o revisionismo neoconservador português é tanto mais evidentemente vazio de sustentação metodológica quanto em menos investigação séria de fontes primárias se baseia e a mais "intuição" e pura interpretação ensaística recorre. Nas palavras de Rosas, a pobreza científica da narrativa revisionista que se espraia com tanto à vontade pelas páginas dos jornais, por alguma "literatura de cordel e até algum trash televisivo", revela-se no facto de se limitar a "reinterpretar ideologicamente aquilo que já se investigou, que já se conhece" graças, justamente, àqueles investigadores a cujo paciente trabalho de desbravamento da memória dos arquivos documentais e de captação da memória oral de milhares de portugueses de todos os setores sociais deve a democracia portuguesa muita da imprescindível explicação da sua génese.

Leio-o há 30 anos, como o não pode deixar de fazer (mesmo que não goste) qualquer outro investigador do séc. XX português. Desde há quase vinte anos que partilho com ele projetos, debates, trabalho, e, é verdade, tenho por ele um apreço e uma admiração que se sente unicamente pelos grandes amigos. Mas o que é mais importante é que muito do que hoje sabemos de quem somos e fomos como povo desde há cem anos a ele o devemos. Disto ninguém se jubila.

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