Espelho meu, os meus filhos votam como eu?

Na minha breve oração agradeço pelo que Soares fez de melhor por nós: podermos discutir abertamente, podermos dizer o que nos vai na alma sem medo de sermos denunciados, podermos estar ali juntos, em família, a receber uma lição de cidadania.

Morreu Mário Soares e a notificação enviada pelo PÚBLICO cai nos telemóveis dos meus filhos. “Então, não vais sair já?”, liga ele, sabendo a resposta de antemão. “Estás triste?”, pergunta ela. A avalanche da informação preparada e a que vai caindo inunda-me a mim e a quem está na redacção e não consigo pensar em sentimentos de perda.

Só quando saio do jornal é que penso no que significa Soares para mim. E regresso aos meus nove anos e ao que ouvia dizer sobre Soares em casa. O que aprendi? Que “Mário” em chinês – qualquer coisa como “malio”, já que os chineses não dizem o “r” – significa “xixi de cavalo”. Note-se que em mandarim eu só sei dizer os números até dez, “bom dia”, “obrigado”, “adeus”, “feliz Natal” e “xixi de cavalo”.

Aprendi que Mário Soares não era patriótico porque pisara a bandeira de Portugal (facto há muito desmentido) e porque entregara as colónias, deixando milhares de portugueses na miséria (também não foi bem assim). Naqueles primeiros anos enchíamos malas de viagem com roupa e sapatos e entregávamos na Cruz Vermelha para essas pessoas que tinham chegado com uma mão à frente e outra atrás. A culpa era do Bochechas, diziam-nos.

Lembro-me das presidenciais e do slogan que por estes dias se voltou a gritar pela cidade e que me comoveu até às lágrimas: “Soares é fixe”. Então, em 1986, quando a caravana do PS passava e se ouviam os gritos de “Soares é fixe”, nós respondíamos “e o povo que se lixe” ou então cantávamos, em desafio, “pátria do sol, terra do sal, país do sul, prá frente Portugal”, o hino da campanha de Freitas do Amaral. Estávamos bem ensinados.

Ler jornais, discutir política com os amigos, ouvir comentadores e os próprios protagonistas das notícias fez-me crescer e decidir educar os meus filhos de maneira diferente.

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DANIEL ROCHA

Desde pequenos que, em períodos eleitorais, nos bombardeiam até à exaustão: “Vão votar em quem?” À medida que foram crescendo, a estratégia foi mudando: “Já sei, vão votar no Cavaco! Não, no Alegre!”, observando a nossa reacção, à espera que um esgar nos denunciasse e nós impávidos. “Não se diz em quem se vota”, respondia o pai. “O voto é secreto”, acrescentava eu. “O pai não sabe em quem votas? Não acredito! Eu sei em quem votam os pais dos meus amigos”, respondiam zangados. “Então como é que sabemos em quem devemos votar?”, perguntavam frustrados. “Quando crescerem vão saber”, respondíamos.

Em vez de dizer um nome, explicávamos o que cada partido defendia. E eles perguntavam “mas isso é bom, não é?” É, mas também tem aspectos menos bons, como este e aquele… Isto deixava-os confusos? Sim, mas é preferível do que pô-los à janela com a bandeira de um partido, como me faziam a mim.

A tentação para que pensem como nós é muita e, no fundo, o mais provável é que pensem mesmo como nós, mas o importante é que façam o seu caminho. Façam perguntas e obtenham respostas que não são nunca isentas, por mais que queiramos.

São crescidos e ele já votou nas últimas eleições. Em quem? A vingança é um prato que se serve frio. Não sabemos, mas queremos acreditar que votou bem porque não o ensinamos a ver o mundo a preto e branco.

Na segunda-feira à noite ao vermos as cerimónias fúnebres de Soares na televisão ela propõe irmos até aos Jerónimos prestar a nossa homenagem porque é o primeiro funeral de Estado depois do 25 de Abril. É uma boa ideia, respondo. No caminho pergunto: “O que sabem de Soares?”. Pouco, admitem, repetindo o que ouviram nos últimos dias: um dos pais da democracia, um defensor da liberdade, o responsável por estarmos na União Europeia.

O resto do percurso até ao refeitório do mosteiro é feito de mais informação sobre a sua forma desassombrada, mas também bonacheirona de estar na vida; sobre a sua coragem de defender a Igreja, embora fosse agnóstico; sobre a sua posição contra a guerra no Iraque e contra a troika, rumando contra a maioria.

Eles observam as pessoas que se cruzam connosco, reconhecem algumas, sabem que são de outras cores politicas que a de Soares e admiram o consenso em torno do ex-Presidente.

Prestamos a nossa homenagem, paramos por momentos junto ao caixão. Na minha breve oração agradeço pelo que Soares fez de melhor por nós: podermos discutir abertamente, podermos dizer o que nos vai na alma sem medo de sermos denunciados, podermos estar ali juntos, em família, a receber uma lição de cidadania.

 

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