Entre o saber e o trajar

Lembrei-me desta cerimónia depois de ler as críticas à princesa Leonor de Espanha que aos 11 anos gosta de cinema japonês.

Há uns anos, uma amiga contava-me que estando numa terra fortemente religiosa como então era Timor-Leste, a dar os primeiros passos depois da independência, e assistindo a uma missa onde todas as pessoas se levantaram e foram comungar, sentiu que não poderia fazer outra coisa senão repetir o mesmo gesto. Não fazê-lo seria ofender aquela comunidade que a acolhera.

Mas estar numa missa, contava-me, não era novidade. “Uma pessoa é ateia, mas vai à missa”, dizia-me. Faz parte da nossa herança judaico-cristã, digo eu. Uma pessoa vai à missa numa festa, num baptizado, num casamento, numa cerimónia de bênção das fitas… E, por isso, não é uma coisa assim tão estranha.

E lá fui eu assistir a uma cerimónia de bênção das fitas. O padre entra no auditório ao som de um cântico religioso que o coro entoa e mal se ouve a última nota, a sala inteira bate palmas. Surpreende-me, mas penso que é uma moda, há tempos, no Teatro Camões, num bailado clássico, o público também batia palmas mal a orquestra se calava, estivéssemos a meio de uma cena com a bailarina ainda no ar, estivéssemos à beira do intervalo.

As palmas vão continuar a ouvir-se durante toda a bênção, assim como assobios. E o sacerdote lá vai adaptando-se à plateia e pede-lhe para que se levante ou para que se sente nos momentos certos. Estranho é haver quem esteja ali trajado a preceito, com a pasta das fitas na mão e não se mexa do lugar, permanecendo sentado. Serão os contestatários? Os ateus? Os mata-frades? Mas foram obrigados a estar ali? Como farão no seu dia-a-dia, quando em termos profissionais tiverem de assistir a uma bênção de outra coisa qualquer? É que o que não falta são cerimónias do Estado laico que metem a Igreja à mistura. Vão permanecer sentados de pernas abertas com um ar displicente e com a mão no rabo da namorada, que está de pé?

Eles não sabem estar numa cerimónia religiosa porque ninguém os preparou para tal. As famílias também batem palmas, conversam ao telefone ou actualizam-se no Facebook enquanto o padre está lá em baixo a dizer umas coisas sobre o futuro, os valores, etc. E o barulho da sala não parece incomodar a direcção da escola nem os professores que ocupam as primeiras filas do auditório.

Finalizada a cerimónia religiosa começam os discursos dos representantes dos finalistas de cada curso. Eles são engraçados, elas tentam ser – é um mal de género. Um deles disseca, professor a professor, as fraquezas e os defeitos. O rapaz pergunta directamente à professora x porque não tiveram todos 20 na frequência quando todos copiaram; ou ao professor y porque passou 1500 slides e eles não apanharam nada da cadeira. Tudo num tom jocoso e na primeira fila os professores riem-se, desvalorizando a crítica implícita ao seu modo de ensinar.

Elas contam aos pais, aos irmãos mais novos, aos tios e aos avós que beberam até cair, até não se lembrarem, até irem parar aos bombeiros ou ao hospital, até não saberem como conseguiram ir às aulas no dia seguinte ou o ano todo. É isto a igualdade de género para elas, não é lutar por direitos e salários iguais, mas por beber até cair. Não sabem como passaram os três anos do curso, mas sabem que ganharam amigos para a vida – algumas emocionam-se.

E os pais riem-se – claro que elas estão a brincar, apesar de as imagens projectadas no palco serem de festas, de jantares, de saídas à noite, de praia e de garrafas. Aquilo das bebedeiras é um exagero, uma hipérbole, sorriem os pais. Sim, porque nós não andamos a pagar jantares, bebedeiras e admissões em hospitais. Não, o que nós pagamos foi propinas, livros, transportes, o quarto, o traje, então podia lá a nossa doutora, que fica tão bem com a sua capa e a sua pasta, beber até cair?

Seguem-se os veteranos que estão “a ver por ali muita gente que não sabe como se usa o traje”. Ui, muito mais importante do que saber que não se bate palmas, não se fala, não se está ao telemóvel… “Quero-vos bem trajados para honrarem a nossa instituição”, diz um deles – será o dux, o rex, o max? Não sei, sei que o rapaz que admite já andar por ali há vários anos – é sempre assim, não é? Ou se dedicam à escola ou às praxes e, mais tarde, à política – passa 20 minutos a fazer um discurso vazio como o próprio admite quando declara, num tom elegante, que já está farto de dizer “piçadas” (sic), frente aos professores, aos pais, aos avós e aos irmãos mais novos dos finalistas. Mais palmas e assobios, os mesmos com que se brindaram o coro e o padre. É tudo a mesma coisa.

Por fim a cerimónia acaba e as famílias vão almoçar, houve quem reservasse mesa num restaurante, o salão dos bombeiros da terra ou alindasse a garagem para receber a família, ouço.

Saio angustiada. São a geração mais bem preparada dizem os próprios depois de confessarem as bebedeiras e o que não aprenderam em três anos. O que farão? Quem os contratará? A direcção daquela escola, sentada na fila da frente, que elogiou a praxe porque precisa da associação de estudantes para se manter no poder, não se sente responsável pelos seus alunos?

Lembrei-me desta cerimónia depois de ler as críticas à princesa Leonor de Espanha que aos 11 anos gosta de cinema japonês. A democratização do ensino chegou, é certo, 43 anos depois do 25 de Abril todos podem chegar ao doutoramento e ainda bem, mas, enquanto ninguém chamar a si a educação integral das crianças e dos jovens – convencido que está que a educação pertence às famílias e o ensino aos professores – continuaremos a fazer distinção entre aqueles que têm conhecimento e sabem estar e os que só sabem trajar. Ainda há muito a fazer e ninguém parece estar preocupado.

Esta Crónica é uma rubrica do P2, caderno de domingo do PÚBLICO

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