De Amadeo a Samarcanda

Cem anos depois, Amadeo voltou enfim a Paris. Na outra margem do Sena, há jardins orientais.

1. Há um século, Amadeo de Souza-Cardoso estava no Minho a pensar quando voltaria a Paris, a cidade que escolhera como contraponto para a amada paisagem rural de Manhufe. Fora forçado a deixar a capital francesa ao fim de oito anos de efervescência criativa, porque a Primeira Guerra Mundial rebentara. Nessa Primavera de 1916, os combates continuavam, e continuaram até 1918, ano em que Amadeo morreu abruptamente, na peste pneumónica que atravessou a Europa. O “mais célebre Pintor avançado Português” (na definição de Pessoa) acabou, assim, por nunca regressar ao seu atelier de Montparnasse, que Modigliani visitava como um amigo íntimo, onde podiam aparecer Brancusi, Picasso, Apollinaire, Max Jacobs ou Robert e Sonia Delaunay. Mas nesta Primavera de 2016, em que a França vive outra espécie de combates, entre greves, marchas e ocupações, é justamente Paris que acolhe a maior exposição alguma vez feita sobre Amadeo, 300 peças, entre obras suas e obras/objectos de contexto, ano e meio de trabalho da curadora Helena de Freitas, numa parceria Fundação Calouste Gulbenkian/Grand Palais. E, saindo daquele pedaço monumental de Paris num domingo de chuva, é difícil pensar como se poderia ir mais longe para conhecer, enfim, “o segredo mais bem guardado do modernismo”. Adiado pela guerra na Europa, e depois pela ditadura que fechou Portugal.

2. A eventual displicência do visitante (e displicência é algo que não falta em Paris) leva logo um chapadão ao entrar em Amadeo de Souza-Cardoso, porque a primeira coisa que se vê é um retrato gigante do homem que ele foi, desafiante, possante, com a frase: “Tenho mais fases do que a lua.” Logo ao lado, uma cronologia fotográfica mostra como aquele olhar densíssimo vinha de criança. A força de Amadeo projecta-se desde aí, e cada sala vai desdobrando em seguida as muitas formas dessa formidável energia, tão profundamente ligada à natureza como à velocidade modernista. O repto desta exposição, neste tempo, nesta cidade, neste museu (onde ele também expôs) era devolver o lugar de Amadeo no mundo, “percebendo a sua vocação não provinciana mas cosmopolita, não mimética mas transformadora”, escreve a curadora, num catálogo de quase 300 páginas e 300 imagens, que ficará para além de 18 de Julho.

3. Amadeo partiu no fim da adolescência para Paris convicto de que tinha “um destino”. Filho da abastada burguesia vinhateira, não dependia de bolsas ou mecenas. Instalou-se com requinte em Montparnasse e pôs o eixo do mundo a girar, numa busca incessante. “Aqui respira-se, em Portugal abafa-se”, escreveu, como tantos, antes e depois dele. Nem por isso amou menos o mundo de onde vinha, ao contrário, cruzou-o com muitos outros, tornando-o único, ampliando-o para dimensões fabulosas. Do que lia, como bem escrevia e, além disso, fotograva (por exemplo, a mulher, Lucie), também a exposição dá conta, além de todos os diálogos com os contemporâneos. Quase no fim, um tríptico de imagens filmadas por Nuno Cera traz os lugares de Amadeo para 2016 de um modo pulsante. Natureza viva, entre Manhufe e a Bretanha.

4. Do outro lado do Sena, num dia de semana, o jardim do Instituto do Mundo Árabe (Notre Dame à esquerda, Île de Saint-Louis em frente) está cheio, crianças a correr entre as rosas, rodas em torno dos canteiros cheirando as flores, um fluxo de gente subindo a passarela em espiral, ao longo das oliveiras, para avistar no topo o mosaico que os canteiros suspensos formam, pelas cores e posição: dois mil metros quadrados de jardim. Mas habitualmente não há passarela nem jardim nenhum em frente ao Instituto do Mundo Árabe. Só para esta exposição, Jardins d’Orient, que percorre o mundo de Sevilha a Samarcanda, de Casablanca a Agra, passando por dezenas de lugares, vários hoje em guerra, ou devastados: Medinat al-Zahra, Granada, Fez, Marraquexe, Argel, Tunis, Nápoles, Istambul, Cairo, Damasco, Meca, Alepo, Bagdad, Tabriz, Teerão, Kashan, Isfahan, Shiraz, Mascate, Nishapur, Herat, Cabul, Bucara, Lahore, Nova Deli. O que todos têm em comum é a herança do jardim islâmico. E em fotografia, pintura, iluminura, escultura, livro, tapete, roupa, objecto, mecanismo, som, filme, é essa herança que a exposição evoca, numa França que desde os atentados de há seis meses mantém o estado de emergência, e se debate com o seu passado colonizador, o seu presente como país de acolhimento.

5. A primeira imagem não é de esplendor mas de pós-cataclismo, em 2011. Um cemitério de palmeiras, troncos-cadáveres, secos, ressequidos, cor de pó. Fotografia de Lateefa Bint Maktoum, uma artista dos Emirados Árabes Unidos. Faz parte de um conjunto para questionar a construção massiva em curso nos países do Golfo, à custa dos recursos naturais. Ela chamou-lhe Observadores da Mudança I.

6. Corta para a tranquilidade do rio Jordão fotografado no século XIX, para as delicadas linhas de Bagdad desenhada a partir do rio Tigre, cúpulas, minaretes, palmeiras, um barquinho de pescadores. Os jardins vêm dos oásis, dos rios, dos canais de irrigação, dos mecanismos que os homens conceberam para elevar, conduzir e multiplicar a água, então esta também é uma exposição sobre a relação do Próximo e Médio Oriente e da Ásia Central com a água. Uma miniatura reproduz um mecanismo de extracção subterrânea com uma vaca andando às voltas e a fiada de cântaros que vão sendo erguidos do poço. Um filme mostra uma menina, que não terá mais de seis anos, sete anos, pulando em cima de uma alavanca, noutro mecanismo de extracção, no meio de um palmeiral, em plena época da colonização. A menina pula e recua, pula e recua, horas de trabalho infantil repetitivo. Filmes e fotografias mostram as grandes noras de Hama na Síria, que vi apenas há sete anos. Continuam a girar? Que se passa em Hama neste instante? Apenas há sete anos, Hama era um lugar onde se ia, apanhava-se um autocarro até lá para ver as noras que rodam desde o século XII.

7. Corta para uma tabuinha de argila com 2496 anos contendo um contrato de mão-de-obra para um canal de irrigação. Foi redigido em caracteres cuneiformes no Iraque, o lugar lendário dos Jardins Suspensos da Babilónia, que aqui aparecem imaginados de várias formas.

8. Sobe-se então ao piso de cima, passando sob a reprodução de uma nora, ao som de água que corre, como no percurso de um tapete, desenho em ascensão. Livros do século XVII da Índia mogol, fontes do século XIV do Alhambra, mosaicos, azulejos de pátios de Damasco ainda há pouco, 1989. Mas também as imagens queer de efebos contemporâneos inscritos em padrões antigos.

9. Há herbários dentro de vitrinas, plantas que secaram ali dentro, ou foram desenhadas e coloridas, livros com narrativas de jardins ou em jardins, a todo o momento espero que me apareça o Baburnama, livro-autobiografia do imperador Babur, esse afegão contemporâneo de Gama e Cabral, fundador do império mogol, grande amante de jardins, trisavô de Shah Jahan, o criador do Taj Mahal. E lá está: uma iluminura do Baburnama.

10. Cheiro de plantas; cor de flores, mosaicos e azulejos; sabor de laranjas; som de água; mas também de alaúde, de tamborim, como os que aqui se acham expostos, porque o jardim, reprodução do Éden, era a experiência de todos os sentidos, então a música tinha nele o seu lugar.

11. Voltando ao presente, fotografias de mulheres em parques no Irão. A cor vem da erva, das árvores, mas desapareceu das roupas delas, de um negro que não se vê nas roupas de há séculos. E a exposição acaba numa peça de 2015 do palestiniano Abdul Rahman Katani. Chama-se apenas Oliveira: um tronco com uma copa toda em arame farpado.

Nota: estas crónicas interrompem-se por duas semanas e voltarão a partir de Jerusalém.

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