Paredes de Coura

O novo presidente da Câmara de Paredes de Coura é um dos indivíduos mais preciosos que em toda a vida encontrei.

O Vítor Pereira, com 44 anos e o modo mais transparente de alma, é uma figura de benignidade ostensiva e eu não sei se haverá no mundo outra pessoa assim.

Nunca me passou pela cabeça que ele pudesse vir a ocupar um cargo destes. O que eu sabia do Vítor passava sobretudo pela intensidade dos afectos, a disponibilidade para os outros, o amor pela esposa e pelos filhos. 
Em Coura todos o conheciam. Ele mistura-se com quem andar na rua. Não tem filtros e não aguenta adiar abraços. Colecciona as histórias pícaras da terra. Ri-se desbragadamente, apoliticamente, como se rir fosse mesmo a melhor das inteligências. Por ser assim, é o que mais tem para dar aos outros, uma energia honestamente votada à felicidade de existir.

O que verdadeiramente me impressiona no senhor presidente da Câmara de Paredes de Coura é, no entanto, a sensibilidade. A sua comoção com as coisas, a celebração dos dias mas também a tristeza sempre consciente do que a vida nos vai fazendo. O que nos tira, quem nos tira, quem nos vai tirar. Eu, que sou um aflito com sensibilidades, percebo bem aquilo que candidamente o Vítor conta. Entendo e acho que a humanidade só existe quando, exactamente, fazemos da felicidade e da tristeza um assunto que chega também, ou sobretudo, dos outros.

Eu não tenho dúvidas de que muitos presidentes de câmara serão imbuídos de um espírito construtivo, um espírito bom, mas não acredito tanto que o nível de lisura do Vítor se repita completamente. Seria a salvação do mundo, se em cada dez houvesse ao menos um assim.

Coura inaugurou, antes do Verão passado, a nova biblioteca, a de Aquilino Ribeiro. Uma casa recuperada que se estendeu e que fica de vistas para a paisagem. Quando subimos às salas de leitura não sabemos se devemos ler ou pasmar nas janelas. Parece a diferença entre ler os livros do Aquilino Ribeiro e ver os livros do Aquilino Ribeiro diante dos olhos expostos.

Fui à nova biblioteca falar com os alunos do secundário e, à noite, com o público geral. Em ambas sessões me vi brevemente apresentado pelo Vítor que, correctamente desimportado com o que vem na wikipédia, repetiu que somos amigos. Pus-me de peito inchado, porque também tenho orgulho e nem sempre o disfarço.

Há uns anos muito largos, por um convite para que fui desconvidado um mês depois, estive quase mudando para Paredes de Coura. Ainda não conhecia o Vítor. Frequentava o festival de música, o melhor de todos, e sentia-me bem naquele norte, gostava do recôndito e de haver galinhas nas capoeiras de todas as casas. Passei a minha infância a ir buscar ovos. Gosto da ideia de trocar milho por ovos. Julguei que me mudaria para Paredes de Coura, arrendando um apartamento pequeno à medida do salário que me pagariam, e teria uma esperança enorme na felicidade a partir da simplificação de tudo.

Quando o convite me foi retirado, julguei que me impediam de toda e qualquer alegria futura. Naturalmente, a minha alma trágica ofuscava os demais caminhos. Mas foi verdade que se juntara em mim uma vontade inexplicável de prosseguir num lugar de beleza profunda onde uma certa pequenez favorece ainda os laços entre uns e outros, permitindo que o tempo seja suficiente para a intensificação de cada gesto, de cada pensamento. Via bem como haveria de escrever ali. Nas terras de Aquilino, eu sei, nem que fosse para o enervar com versões contemporâneas das gentes por quem se enamorou.

Hoje, guardo por certas terras portuguesas uma nostalgia por definir. Não sei se passa pela vontade de impedir a desertificação do interior, que está sempre violentamente atacado por crises e políticas sem juízo. Tenho a ideia romântica de que devíamos recuperar os casarões abandonados e fazer deles lares vivos. Antes que se desmoronem, como gente que morre sem memória. Um casarão, e na sala uma escultura de artesanato do senhor João Reis Lima, que me pediu muito dinheiro por uma peça que larguei com peso na alma. Não faz mal. Um dia destes volto. Vou voltando sempre. Agora, mais do que nunca, feliz por acreditar que Paredes de Coura está magnificamente cuidada pelo Vítor Pereira. Um homem de profunda boa fé.

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