Ano Novo é quando o carioca quiser

1. Dez de Janeiro e tudo à espera da meia-noite no Largo de São Francisco da Prainha. O Rio de Janeiro está a arder? Tem arrastão na praia, polícia reprimindo garoto em shopping center, manifestação contra a polícia em shopping center, além de que a sensação térmica chegou aos 50 graus? Pouco importa, nada pára o réveillon dos Escravos da Mauá. Centenas de cariocas destilam de pé, em volta da roda de samba que os levará até 2014, incluindo previsão do tempo.

A roda pergunta:
— E a chuva vai…?
A plateia responde:
— … pra São Paulo!!!!

2. Prainha porque as águas da Guanabara chegavam aqui. É a zona portuária do Rio de Janeiro, que já foi dos escravos, das prostitutas, dos primeiros sambistas, os bairros Saúde
Gâmboa, aos pés do colorido Morro da Conceição, ao lado da Praça Mauá. Em 1993, um bando de amigos, quase todos funcionários do Instituto Nacional de Tecnologia, ali nas imediações da praça, decidiram formar um bloco de Carnaval e chamaram-lhe Escravos da Mauá. Hoje desfilam com 20 mil pessoas na última quinta-feira antes do Carnaval, a partir daqui mesmo, do largo de São Francisco da Prainha. Carnaval de 2014 é só em Março? Não, Carnaval no Rio começa a seguir ao réveillon. O réveillon dos Escravos da Mauá é ao mesmo tempo o fim do Ano Novo e o começo do Carnaval. Daqui até Março, mesmo com arrastão, repressão, manifestação, será festa pra acabar. E com esse calor quem é que pode trabalhar mesmo?

3. Vamos de Canto de Ossanha, primeiro dos afro-sambas de Baden Powell e Vinicius de Moraes:

Vai! Vai! Vai! Vai!
Amar!
Vai! Vai! Vai! Vai!
Sofrer!
Vai! Vai! Vai! Vai!
Chorar!

Vai! Vai! Vai! Vai!

Dizer!

Não que esta roda cante por aí além, não mais do que qualquer carioca em qualquer esquina, mas tudo bem, tamo aí, tamo junto, cerveja gelada, na tranquilidade. Aliás, esse negócio de meia-noite é sem stress, que aqui não tem relógio mundial à espera do fogo-de-artifício do Rio de Janeiro:

— A meia-noite chegará quando possível — diz a lendária Eliane Costa, durante anos gestora dos patrocínios culturais da Petrobrás, então como agora cavaquinista dos Escravos da Mauá. — Zero e um, zero e quinze, até zero e trinta…

Mas não deixará de haver fogos, tranquiliza outro membro do bloco:
— Dez segundos de queima total!

4. Boa parte da plateia, pelo menos junto à coluna de som da direita, veio directa dos anos 60, trazendo toda a maconha dos anos 60. Senhoras de grande amplitude e baseado aceso, um risco para as imediações. Faço de velha jarreta tentando respirar, pensando que faria se não fosse ao ar livre. Mas elas é que estão certas, fumam e rodopiam como se não houvesse meia-noite, quanto mais amanhã. Plateia quase toda branca, roda toda branca. Samba, confirmo, está mais para branco, classe média, essa aqui. Fora do Carnaval, neguinho da favela está é no funk, no passinho.

5. No Carnaval de 2013, os Escravos da Mauá homenagearam João Cândido, o marinheiro negro que entrou para a História como Almirante Negro por ter liderado a Revolta das Chibatas, em 1910. João Bosco e Aldir Blanc fizeram uma canção para ele, Mestre-sala dos Mares, uma daquelas que Elis Regina cantava e agora a roda canta:

Glória aos piratas, às?
mulatas, às sereias?
Glória à farofa, à cachaça,
às baleias?
Glória a todas as lutas
inglórias?
que através da
nossa história
não esquecemos jamais?

Pares sem idade beijam-se no meio da plateia, parando o tempo, mas, como disse a cavaquinista, a meia-noite pode esperar. Uma moça do bloco chega ao microfone, como em festa de aldeia:
— Dona Isabel, sua filha Bruna lhe aguarda atrás do palco.

6. Antes da meia-noite ainda cabe a Mangueira de Tom Jobim e Chico Buarque:

Mangueira!
Estou aqui na plataforma
da estação primeira

Para quem não conhece o Rio: a Mangueira, favela e escola de samba, era também a primeira estação de comboio para quem saía da Central. Mangueira pode tudo, até furar o réveillon.
— Meia-noite! — grita alguém da plateia.
— Que meia-noite, não tem meia-noite, muita calma nessa hora — responde a roda.

7. Então, não só o réveillon dos Escravos da Mauá acontece vários dias mais tarde (não há dia certo, varia), como este ano só vai acontecer oito minutos após a meia-noite. Primeiro entra uma gravação de Milton cantando Coração de Estudante:

Quero falar de uma coisa?
adivinha onde ela anda?
deve estar dentro do peito?
ou caminha pelo ar?

Logo voam serpentinas, bolas de sabão, jactos de espumante.
— Feliz Ano Novo!


Bruaá na multidão, como se estivéssemos em Copacabana. Os músicos da roda abraçam-se, quem tem estalinhos, fora e dentro do palco, acende-os: a queima total são fogos-de-artifício portáteis. Próxima etapa, desfile na quinta-feira antes do Carnaval. Depois do Carnaval tem a Copa e a seguir começa o Natal.

alc.atlanticosul@gmail.com
http:/blogues.publico.pt/atlantico-sul/

 

Crónica publicada na Revista 2 de 19 de Janeiro de 2014

Sugerir correcção
Comentar