Abril e Kazan

1. Os 40 anos do 25 de Abril deixaram-me num amontoado de sensações contraditórias. Lembrei-me, claro, da minha juventude na Revolução dos Cravos, da participação em dezenas de comícios e manifestações, da militância política de esquerda e da crença num Portugal renovado. Para mim, a pergunta “Valeu a pena?” não faz sentido. Para as pessoas da minha geração, também o dia 25 de Abril de 1974 foi dos dias mais felizes da vida e a alegria do 1.º de Maio desse ano perdurará para sempre na minha memória.

As comemorações deste ano merecem atenção, porque vieram demonstrar, mais uma vez, a distância enorme entre o poder legitimado pelo voto e o povo que o determinou. Sou dos que pensam que o Governo tem toda a legitimidade para governar, porque foi escolhido em eleições democráticas. A oposição tem o dever de protestar e lutar por alternativas. As instituições democráticas não funcionam com eficiência, mas não estão em risco. Temos uma imprensa livre, fundamental no combate à corrupção e ao clientelismo. Em breve haverá eleições e os portugueses poderão, se quiserem, mudar o sentido do voto.

No entanto, as manifestações de Abril deste ano evidenciaram a clivagem entre o povo e o poder. Na Assembleia da República, as comemorações decorreram sem grandes novidades e as televisões limitaram-se a registar os discursos oficiais, sem a ousadia de mostrar as imagens dos (poucos) militantes da extrema-direita e, sobretudo, sem evidenciar a grande adesão do povo no Largo do Carmo. Um tímido quadradinho nos ecrãs roubou àqueles que ficaram em casa a possibilidade de participar na evocação do muito que Abril representou, e impediu, nos telespectadores, a renovação da esperança num futuro melhor. No Carmo, foi evidente a forte crítica ao Governo actual e a recordação, um pouco nostálgica, da Aliança Povo-MFA, que permitiu o triunfo de um golpe militar. 

Outra clivagem foi patente neste 25 de Abril. Nas ruas, sobretudo no Carmo, predominou a gente idosa, a recordar a festa de há 40 anos e a protestar contra o Governo e o Presidente. As crianças e os adolescentes eram poucos, o que mais uma vez demonstrou que a política e mesmo o 25 de Abril pouco dizem às novas gerações. Numa operação combinada ao pormenor, o primeiro-ministro recebeu jovens de diversas associações que, na realidade, nada representam: vivem, na sua maioria, de subsídios estatais e estão divorciadas da massa estudantil. Infelizmente, cidadania activa não é o slogan da juventude de hoje, ao contrário do que sucedeu há 40 anos. 

2. No final da noite de 26 de Abril, apercebi-me de que a RTP2 estava a dar um Ciclo Elia Kazan, um dos meus cineastas favoritos. Comecei com Esplendor na Relva, com Natalie Wood e Warren Beaty, um notável filme sobre as vicissitudes da paixão adolescente, na América conservadora dos anos 1930. Revisito esta obra várias vezes e em todas me surpreende: o enquadramento social, a relação conturbada entre os pais e os filhos adolescentes (o que conserva toda a actualidade), o eterno conflito entre o desejo e a contenção, a precisão dos diálogos e o desempenho dos actores tornam este filme inesquecível. Recomendo aos meus leitores todas as restantes películas de Kazan que a RTP2 continuará a mostrar nos próximos sábados.

Kazan, como alguns outros, foi muito criticado por razões políticas. Felizmente que nos deixou estes filmes.

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